“O descobrimento das jazidas de ouro e prata da América, a cruzada de extermínio, escravização e sepultamento nas minas da população aborígene, o começo da conquista, o saqueio das Índias Orientais, a conversão do continente africano em local da caça de escravos negros: são todos feitos que assinalam os alvores da produção capitalista.” (Karl Marx, O Capital, volume I)

Então, grande Karl Marx, esses feitos continuam marcando a manutenção e reprodução do capitalismo que, se nos seus alvores, apesar de todo esse massacre, significou um progresso para a humanidade em relação ao escravismo e ao feudalismo que lhe antecederam, hoje significa um entrave ao verdadeiro progresso, felicidade e bem-estar da humanidade e, se não for superado pelo socialismo, levará o gênero humano de volta à barbárie, como previu seu amigo e parceiro de teoria e prática, o segundo violino – Friedrich Engels.

Potosi, na Bolívia, é um exemplo. Nos séculos XVI e XVII forneceu à Europa mais da metade da prata que enriqueceu a burguesia, e a sobra ainda dava para os invasores ostentarem numa cidade de 200 mil habitantes, a maioria escravizada, rivalizando com as metrópoles. Esgotado o minério, foram abandonando o local, onde deixaram 8 milhões de cadáveres de indígenas. “Só ficaram vivos os fantasmas da riqueza morta” (Eduardo Galeano).

No século XX, Potosi volta a ser explorada, agora à procura de estanho, com a mesma pobreza e miséria, agora sem ostentação, pois tudo vai para as indústrias diversas, inclusive, para recipientes que conservam alimentos, nos quais uma parte, por pequena que seja, passa para os alimentos e será fonte de doenças. Ele é também um dos componentes das pastas dentais. Pois bem, os mineiros são vitimados pela silicose, tendo vida média de 45 anos.

Resistência

Há 211 conflitos na América Latina entre comunidades indígenas, camponesas, Estados e empresas multinacionais e nacionais por causa da mineração. Este é o número registrado pelo Observatório de Conflitos da Mineração na América Latina. De fato, o número é maior, pois o próprio Observatório afirma que precisa de mais informações do Brasil, Paraguai e Venezuela.

Acusadas pelas empresas e governos de dificultarem o desenvolvimento nacional, as comunidades, que não se deixam levar por essa conversa e resistem, têm toda razão. Para o povo, o número e a baixa qualidade dos empregos que a extração de minérios gera não compensa as consequências, que são muitas e graves.

A água é contaminada por arsênico, que causa câncer, e por metais pesados como o mercúrio e o chumbo, que causam problemas neurológicos e respiratórios, entre outros. As enfermidades sociais são sérias. Comunidades de duas mil pessoas são, de repente, ocupadas por 10 mil mineiros, desequilibrando a vida social com a introdução de drogas, prostituição, roubos e delinquência diversificada. Quando vão embora, os problemas ficam.

O regime de trabalho é de semiescravidão. A legislação trabalhista não é respeitada. Além da insalubridade e periculosidade, as jornadas de trabalho são extenuantes: 13, 14, 16 horas. Existe também o regime de 14 dias de mina, 14 de folga. Jogam por terra as convenções da Organização Internacional do Trabalho e as declarações da ONU sobre direitos do trabalhador e direitos da cidadania.

Tragédias como a de Mariana (MG), no Brasil, e Veladero, na Argentina, ambas ocorridas em 2015 (novembro e outubro, respectivamente), que deixaram danos irreparáveis às pessoas e à natureza, não são acidentes. São fruto da irresponsabilidade da burguesia e de seus governos, diante da vida, uma vez que na (i)lógica capitalista, o que importa é o “ter” e não o “ser”.

Desde a Colonização

Não surpreende que os governos burgueses estimulem e apoiem esse tipo de atividade, pois esta é sua função mesmo: servir às classes dominantes. O que surpreende é que atitudes idênticas estejam sendo adotadas por regimes bolivarianos que propunham a libertação nacional e a construção do socialismo do Século XXI.

Na verdade, além da retórica, não houve ruptura com o modelo agroexportador dependente e associado, até porque não houve acúmulo de forças suficientes para isso. Fazer autocrítica e refazer caminhos é louvável e faz parte do processo de transformação da sociedade. Agora, render-se ao modelo em nome do desenvolvimento e para não permitir que o governo volte a ser assumido pelas elites tradicionais, é inaceitável.

O caso mais gritante é o do Equador, onde o governo de Rafael Correa, rompendo com a Constituição da Revolução Cidadã e com seu Programa – Plano Nacional do Bem Viver (PNBV) –, firmou acordo com a China para leiloar três dos seus oito milhões de hectares de selva amazônica com empresas chinesas para a extração de minérios. A justificativa é o desenvolvimento econômico e a manutenção de programas sociais ameaçados por falta de recursos. Na realidade, o Equador acumula uma dívida de US$ 7 bilhões com a China, correspondentes a 10% do Produto Interno Bruto.

As áreas leiloadas pelo governo equatoriano atingem em cheio os territórios indígenas, que têm pressionado, por meio de diversas formas de denúncia e mobilização, e recebido em troca muita repressão e táticas de cooptação das organizações menores, buscando o isolamento da Confederação Nacional de Organizações Indígenas (Conaie). A repressão se estende agora ao movimento estudantil, como informado na última edição de A Verdade.

Dependente do petróleo, o governo de Maduro, na Venezuela, está fustigado pelo boicote econômico da burguesia local associada ao imperialismo estadunidense, com o povo amargando carestia e desabastecimento e reduzindo seu apoio ao regime bolivariano.

O Modelo Econômico e Social Produtivo da Bolívia, presidido por um líder indígena, Evo Morales, tem obtido sucesso, reduzindo a pobreza e produzindo crescimento econômico. Agora, entretanto, está sob ameaça justamente porque seu êxito está embasado nas exportações de gás e minério, cujos preços estão em queda, provocados pela estratégia imperialista de dominação, à qual aderiu a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep).

Para tentar a superação de suas crises, que se tornam contínuas em vez de cíclicas, como na época em que Marx escreveu O Capital, a classe burguesa, por meio dos Estados centrais (imperialistas), não está disposta a permitir a permanência de governos que ofereçam o mínimo que seja à sua voracidade (vide a recente derrubada da presidenta Dilma Rousseff no Brasil) e o fustigamento permanente do governo de Maduro.

Existe saída?

No modelo capitalista não há saída, senão o aprofundamento da exploração, da destruição da natureza e dos seres vivos. Portanto, como dizia Engels, a humanidade só tem duas alternativas: socialismo ou barbárie. O problema é como chegar ao socialismo. Quem tem interesse objetivo nessa mudança, mesmo que não tenha consciência disso, é o proletariado – assim considerada a classe dos despossuídos dos meios de produção, aqueles que só dependem da sua força de trabalho para viver.

Para construir o socialismo, então, essa classe precisa estar consciente, organizada, mobilizada, criar o seu poder autônomo, independente. E o poder real só existe se reunir os aspectos econômico, político e ideológico. Construído de baixo para cima. Não adianta assumir o governo dos Estados, seja por via pacífica ou armada, pensando em promover as transformações a partir do aparelho estatal, sem contar com a base capaz de construir o novo modelo e não se deixar intimidar ou enganar por pressão ou cantos de sereia dos meios de comunicação.

Sem direção revolucionária fundamentada na teoria marxista e na compreensão da nossa realidade e das experiências históricas de cada país da América Latina, as massas não construirão o poder popular. Sem as massas conscientes e organizadas não haverá direção revolucionária; por mais firme e decidido que seja o grupo de revolucionários, este nunca terá o poder de construir o socialismo se estiver desligado das massas.

Sem essa combinação entre vanguarda e massa, assim como uma locomotiva aos vagões de um trem, conformando uma unidade, não haverá socialismo no Século XXI e em nenhum outro século. As lições da História estão postas, mas muitos não conseguem ou não querem aprender com elas.

José Levino é historiador

Publicado originalmente em A Verdade