A Constituição de 1988 trouxe em seu art. 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) que: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. A previsão constitucional foi importante no sentido de reconhecer os direitos dessas comunidades, com quem o Estado e a sociedade brasileira possuem uma dívida histórica – em referência aos mais de três séculos de escravidão e a abolição apenas formal da escravidão, com expulsão violenta das comunidades negras das terras que ocupavam para resistir à escravidão e sem  a previsão de qualquer tipo de reparação, ou mesmo promoção do acesso à terra aos ex-escravos/as.

Assim, o reconhecimento de uma política pública de acesso à terra e ao território para as comunidades quilombolas, 100 anos após o fim formal da escravidão, significou um avanço na tentativa de combater o racismo, presente de forma estrutural na sociedade brasileira.

O Decreto 4887/2003, é aquele que veio para regulamentar o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por comunidades quilombolas. Em suma, essa normativa trata da política pública quilombola. No entanto, desde 2003, esse Decreto tem a sua constitucionalidade questionada a partir da ação proposta pelo antigo Partido da Frente Liberal (PFL) – atual Partido Democrata (DEM), com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 3239.

A ADI 3239 está na pauta do Supremo Tribunal Federal e até o momento obteve apenas dois votos: um do ex-ministro Cezar Peluso, em 2012, pela inconstitucionalidade do Decreto, e assim, contra a efetivação dos direitos das comunidades quilombolas e outro voto da Ministra Rosa Weber, em 2015, pela constitucionalidade do decreto, ou seja, a favor dos direitos quilombolas. Em 2015, o Ministro Dias Toffoli pediu vista do processo e na próxima quarta-feira (16/08) está previsto novo julgamento.

Julgamento no STF e ameaça de retrocesso: a tese do Marco temporal

No julgamento da ADI 3239, que ocorre então no dia 16 de agosto, existem algumas possibilidades:

  1. Que a maioria dos ministros reconheçam a inconstitucionalidade do Decreto, em contrariedade aos direitos das comunidades quilombolas, o que significaria um verdadeiro retrocesso no que já foi possível reconhecer até hoje em termos de direitos para essas comunidades;
  2. Pode ser que a maioria dos ministros entenda pela constitucionalidade do Decreto, reconhecendo assim os direitos das comunidades quilombolas, nos termos do que fez a Constituição;
  3. Pode ser que algum ministro/a peça vista, alterando e adiando a data do julgamento;
  4. Que se entenda pela constitucionalidade do Decreto, com ressalvas e imposição de condicionantes tal como ocorreu no histórico julgamento da Raposa Serra do Sol, em que o STF impôs condicionantes à efetivação dos direitos dos povos indígenas ao acesso de suas terras ancestrais.

Dentre essas condicionantes está a que chamamos de ¨Marco Temporal¨ que diz respeito a dois aspectos:

  1. Somente podem ser tituladas as terras dos remanescentes de quilombos que lá estavam em 1888, entendendo que é preciso que essas comunidades comprovem que a comunidade descende diretamente de um quilombo ao tempo da escravidão – momento no qual a quilombagem era crime;
  2. Somente podem ser tituladas as terras dos remanescentes de quilombos que na data promulgação da Constituição de 1988, isto é, em 5 de outubro de 1988, já ocupavam as terras.

Ambos os entendimentos são totalmente absurdos e significam retrocessos para a efetivação dos direitos das comunidades quilombolas, já que exigir que os direitos somente serão efetivados àqueles/as quilombolas que estavam na terra em 1988 ou mesmo pedir comprovação de que lá estavam desde 1888 é fechar os olhos para o processo histórico de expulsão violenta e perseguição às comunidades negras das terras que ocupavam para resistir à escravidão e a marginalização pós abolição formal da escravidão, abolição essa que, de fato jamais ocorreu.

Importante ressaltar que essa tese foi, primeiramente, adotada para os povos indígenas na decisão do STF sobre a demarcação de Raposa Serra do Sol (2009) e que foi no dia 19 de julho deste ano adotada pelo Governo Temer como procedimento obrigatório para toda a administração pública. Ou seja, para as terras indígenas em processo de demarcação a tese do marco temporal já está sendo aplicada.

No mesmo dia em que ocorre o julgamento da ADI 3239, também estará na pauta do STF o julgamento de três ações sobre territórios indígenas. As Ações Civis Originárias (ACO) 362, 366 e 469. As duas primeiras discutem pedidos de indenizações por demarcação de terras indígenas pelo Estado do Mato Grosso e a última discute anulação de títulos de imóveis rurais dados pelo Estado do Rio Grande do Sul para particulares referentes a terras indígenas. Nestes casos, as compreensões de quando o direito a terra indígena passou a existir também está em discussão, havendo o risco de reforço da tese do marco temporal.

Em razão destas ameaças de graves retrocessos, quilombolas e indígenas, estarão unidos durante toda esta semana, e em vigília em frente ao STF, em resistência ao avanço do racismo institucional, através da tese do marco temporal.

Racismo institucional e avanço dos interesses capitalistas

Não é demais relembrar que os territórios indígenas e quilombolas são territórios que contrariam interesses imobiliários de grandes empresas, com seus projetos de desenvolvimento como agronegócio, mineração, latifundiários e especuladores de terras. O documentário Martírio (2016) mostra bem o que é a questão indígena no Brasil, bem como o que é e como se move a Bancada Ruralista.

Tais comunidades, que lutam pela efetivação de seus direitos, além de enfrentar a morosidade do Estado e dos órgãos responsáveis pelas demarcações e titulações de suas terras, precisam lidar constantemente com o avanço dos mega empreendimentos e os interesses dos ruralistas, já que – aos olhos dos racistas – são essas as populações consideradas descartáveis e que não seriam dignas de direitos e nem de acessar à terra.

Os ataques racistas aos povos indígenas e quilombolas vêm não só de parte do Judiciário, como também do Legislativo, através de propostas de Emenda a Constituição como a que permite a mineração em terras indígenas, bem como aquelas que dizem respeito à flexibilização dos processos de licenciamento ambiental e as propostas de modificações na legislação minerária para facilitar o ingresso de grandes empreendimentos no país são só algumas das ameaças vividas por esses territórios.

Enquanto populações tradicionais estão cada vez mais impedidas de acessar seus territórios, parlamentares fundamentalistas, como Bolsonaro (PSC-RJ), podem livremente proferir declarações racistas e de ódio como, por exemplo, quando ele disse: “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles”. No mesmo sentido também é a Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI FUNAI-INCRA 2, iniciada no final de 2015 e encabeçada pela Bancada Ruralista do Congresso Nacional. A CPI foi apresentada pelo deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), e propos o indiciamento de lideranças indígenas, quilombolas, pesquisadores/as, ativistas, bem como servidores/as públicos/as, antropólogos/as, responsáveis pelos processos de demarcação e titulação de terras.

O relatório da CPI insinua que a FUNAI e o INCRA foram tomadas por esquemas de corrupção e ações truculentas. Usando a falsa ideia de democracia racial, a introdução do relatório da CPI cita trecho do livro de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala: “Todo brasileiro , mesmo o alvo de cabelo louro, traz na alma, quando não no corpo (…) a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro”. Ainda no relatório tratam a garantia do direito dos povos e comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas como ¨discurso protetivo de minorias¨ que ¨segrega, mais divide do que protege e nos aproxima do jus sanguinis, que tem feito em pedaços países por todos os recantos do mundo.¨ 

A introdução do relatório da CPI chega a dizer em um trecho que “Nascidos aqui, todos são brasileiros – negros, indígenas, brancos, amarelos, mulatos, cafuzos, caboclos, mamelucos – tenham vindo seus pais e avós de onde for“. O discurso de que somos todos/as iguais, e que ¨todos são brasileiros¨, contudo, abriga o mais perverso racismo, que visa no final das contas impedir que indígenas e quilombolas possam ter o direito de acesso à terra e território.

Por isso, estabelecer o marco temporal no julgamento da ADI 3239 será negar, através do Judiciário, materialmente a possibilidade dos quilombolas que foram expulsas ou tiveram seus territórios reduzidos de lutarem juridicamente pela legitimidade e manutenção do mesmo. Trata-se da reprodução, por parte do Estado e do direito das não condições de vida historicamente instituídas pela colonização e escravidão, apontando para um passo atrás, um passo no fortalecimento do racismo institucional, que por sua vez fortalece o racismo como sistema de opressão estruturante de nossa sociedade.

Lutar contra os avanços do capitalismo sobre os territórios ancestrais, e pela efetivação dos direitos das comunidades quilombolas e indígenas é lutar não só pela democratização do acesso à terra como também pelo fim do racismo! Por isso, contra os retrocessos racistas e pela efetivação dos direitos das comunidades quilombolas e dos indígenas gritamos NÃO ao marco temporal!

#NossaHistóriaNãoComeçaEm1998

#NenhumQuilomboAMenos

Por Heiza Maria Dias e Larissa Vieira,  militantes do Movimento pela Soberania Popular na Mineração – MAM e advogadas populares, respectivamente, do Coletivo Antônia Flor do PI e do Coletivo Margarida Alves de MG.