Para Karina Martins as populações atingidas pela mineração vivem um terror permanente, com o desmonte da sua cultura e ameaças cotidianas de morte

Por Solange Engelmann
Da Página do MST 

 

Em entrevista ao site do MST, a integrante da coordenação nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), Karina Martins, traz um debate fundamental e urgente sobre o modelo de mineração brasileiro e a proposta do movimento para enfrentar esse processo.
Na concepção de Karina, o modelo de mineração no país é essencialmente neocolonial, praticado secularmente desde o século XVI. Nesse sentido, a luta pela soberania nacional para barrar o domínio do capital passa pela discussão de um modelo de mineração feito com a participação da população.

“A questão não é a mineração em si, mas o seu modelo. Questionamos o modelo de produção minerário, que precisa estar sobre o julgo da população brasileira e não sobe o julgo do grande capital internacional”, argumenta.
Veja entrevista completa:

Qual o modelo de mineração adotado pelo Brasil?

A mineração no Brasil repete um ciclo com características bastante semelhantes desde o seu processo de colonização. O Brasil serve como uma colônia produtiva baseada numa pilhagem dos bens naturais de exploração, que vai subsidiar o grande capital internacional.
Quando a gente começa a ser colonizado no século XVI, temos como grande ciclo o ouro. Agora assistimos a um novo modelo de exploração, baseado, principalmente no minério de ferro. E esse minério de ferro tem também como destino os grandes capitais no século XXI, numa disputa inter-imperialista feita pelos Estados Unidos e pela China.
O modelo de mineração posto é um modelo neocolonial, que só tem como grande medida a exploração dos nossos bens, dos seres humanos e da sociedade. Sendo os mesmos espoliados de sempre: os pobres, negros, indígenas, precarizados na sua forma de trabalho e tendo a sua vida e a lógica de reprodução extremamente violadas todos os dias.

Como o governo Bolsonaro pretende viabilizar esse modelo?

É um governo que já se posicionou favorável expansão das áreas de mineração. De autorizar cerca de 20 mil novas áreas para a exploração minerária no país, mediante a flexibilização das leis ambientais e a legalização e expansão de mineração já realizada. Mas, agora vai aumentar ainda mais em terras indígenas e quilombolas.
Ao mesmo tempo, o presidente já declarou que não haverá mais nenhum pedaço de terra destinado à proteção ambiental e nem aos povos originários e aos quilombolas.
Trata-se de um governo neoliberal que tem como grande premissa a exploração dos bens naturais e a venda, cada vez maior, do território nacional para o grande capital internacional. O governo de transição, do governo Temer para o governo Bolsonaro já havia afirmado esse processo de flexibilização das leis ambientais. Tanto que assistimos agora mais um novo desastre, novo crime ambiental que é Brumadinho.

Há diferenças entre o modelo brasileiro de mineração com os países capitalistas do primeiro mundo?

Sofremos um processo de exploração minerária de subserviência absoluta. Aqui tudo é explorado ao máximo. Existem algumas questões que diferem de uma periferia do capital para o centro: a questão dos royalties, por exemplo. O Brasil tem os royalties mais baixos do mundo. Enquanto a China arrecada 4% em ouro, o Brasil arrecada 1,5%. Em minério de ferro, enquanto o Brasil arrecada 3,5%, o Canadá arrecada 16%.
Há uma diferença absurda em relação ao recolhimento dos royalties. O que garante ainda maior lucratividade das empresas mineradoras no nosso território. E mesmo lucrando mais do que nos outros territórios, ainda assim há um não cumprimento das leis. A legislação dos estados brasileiros são muito flexíveis e há um descompromisso
em cumprir as leis ambientais e as leis trabalhista. Algo que não acontece no centro do capitalismo, lá as mineradoras respeitam as legislações dos estados com extremo rigor, tanto nas licenças ambientais, quanto no funcionamento das minas. Há um processo de fiscalização permanente, o que não temos no Brasil.
Por exemplo, as barragens na Austrália são muito mais seguras. O que não acontece aqui no Brasil – as barragens de rejeito são de extrema instabilidade, não há fiscalização. O que culmina nos desastres ambientais, trabalhistas com perdas e inúmeras mortes que a gente vem assistindo nessas últimas semanas, em Brumadinho-MG.

Qual o impacto do modelo de mineração brasileiro nas comunidades ribeirinhas atingidas e no meio ambiente?

O modelo brasileiro de mineração tem que ser repensado, porque fica nos territórios periféricos do nosso território nacional, onde as comunidades impactadas são as comunidades vistas como ‘ninguéns’, como retratou em seus textos o escritor Eduardo Galeano. Temos uma lógica de violação do modo cultural que àquelas pessoas vivem: os ribeirinhos começam a não conseguir subsistir mediante o rio, as comunidades quilombolas e indígenas também sofrem ameaças permanentes pelas grandes corporações minerárias.

Também há um processo de impacto ambiental permanente, com a poluição do solo, do ar e dos lenções freáticos, que a gente não consegue ter a dimensão porque os estudos são sempre escamoteados. A população que está no coração da mineração vive um terror permanente e pânico generalizado. Há um processo, inclusive, de violência sexual – são cidades e comunidades pequenas que passam a habitar um número grande de homens e com isso surgem os problemas de um centro urbano, em uma periferia. São altos índices de uso de drogas, de prostituição e com isso ocorre o desmonte da cultura de um povo. E a gente passa a matar cotidianamente a população brasileira.

Com o rompimento da barragem de rejeito de Brumadinho, quais providências estão sendo tomadas para amenizar o sofrimento e garantir o direito à indenização e ressarcimento das famílias atingidas pelo crime da Vale?

Mais uma vez foram violados todos os direitos trabalhistas, todos os direitos do meio ambiente. Estamos pressionando a empresa, o Estado, acionando a sociedade civil e o poder judiciário para o cumprimento da lei e a amortização, nessa primeira instância, as mazelas que as famílias estão sofrendo. Porém, a Vale anunciou algumas medidas semana passada, falando em “doação”, de cerca de cem mil, por família. “Doação” de que? Ao violar todos os direitos daquele indivíduo, da sociedade, o contrário, estamos falando de direitos. A Vale não é vítima, mas sim a população de Brumadinho e seu entorno, que são vítimas desse capital minerário, que é assassino, violento, racista e não respeita o modo de se viver daquela população.
Estamos num processo de mobilização nesse momento, puxado pelos movimentos sociais, mas só vai ocorrer o cumprimento de lei se a população brasileira se organizar para isso, caso contrário, novamente cai no esquecimento do imaginário social e fica na mão do judiciário brasileiro, que não tem nenhuma preocupação e vontade de resolver os problemas da sociedade.
Esse caso reafirma a importância da mobilização de massa, de uma força social organizada que consiga mobilizar a população brasileira e internacional porque só assim, com grandes mobilizações vamos conseguir fazer o enfrentamento para que a lei seja cumprida e alguma coisa seja feita em resposta ao desastres de Brumadinho.

Quais as alternativas para construir um modelo soberano e popular na mineração?

Nós do movimento pela soberania popular na mineração defendemos que o processo da soberania popular só ocorre quando a população passa a discutir o modelo de mineração. Só seremos um povo soberano quando termos autonomia sobre as decisões do modelo econômico minerário desse país. Caso contrário vamos ficar dentro da lógica do grande capital, servindo como massa de manobra de exploração permanente.
A mineração é algo que acontece secularmente, então, a questão não é a mineração em si, mas o seu modelo. Questionamos o modelo de produção minerário que precisa estar sobre o julgo da população brasileira e não sobe o julgo do grande capital internacional.