Em conversa com o MAM, a deputada fala sobre as consequências do massacre de Brumadinho, a importância da instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar os descasos desse modelo predatório e como a Vale controla os mecanismos do pós-crime de maneira perversa

Correr atrás da impunidade. Esse é o sentimento de quem se depara com as irreparáveis consequências do segundo grande rompimento de uma barragem da mineradora Vale, em pouco mais de três anos, no estado de Minas Gerais. O crime ocorrido no último dia 25, na Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, Região Metropolitana de Belo Horizonte, registra até o momento 165 mortes e 160 pessoas seguem ainda desaparecidas, segundo a Defesa Civil do estado. O cemitério a céu aberto na região é devastador, nesse que já é considerado o maior acidente de trabalho ocorrido no Brasil.

O MAM conversou com a deputada estadual mais votada da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais, Beatriz Cerqueira (PT), que endossa um dos três pedidos pela abertura da CPI da Mineração na casa, além dos deputados Sargento Rodrigues (PTB) e Dr. Wilson Batista (PSD). Beatriz integra ações de denúncias contra a Vale, Samarco e BHP desde 2015, após o crime do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana. Já são 22 anos de militância, em uma trajetória que acumula, entre diversas lutas, passagens pelo Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação e, ainda, tendo sido a primeira mulher e professora a ocupar a presidência da Central Única dos Trabalhadores do estado. Confira:

A relação de Minas Gerais com a mineração é histórica, datada desde os tempos da Colônia. O estado ainda é considerado o líder dessa prática predatória. Qual a importância da instauração de uma CPI da Mineração no atual momento?

Essa é uma CPI que deveria ter acontecido em 2015, quando a Vale cometeu o crime com o rompimento da barragem de Fundão. Já eram muito graves as consequências para a população, economia mineira, meio ambiente, e com as vidas que se perderam e tantas outras que ficaram marcadas para sempre. Então, é dever nosso, de quem tem uma luta popular e que compreende o que é a vida das pessoas atingidas por mineração, fazer um processo sério de investigação e de apuração. A CPI é a melhor resposta que o parlamento mineiro poderia dar nesse momento. Como um estado tem tantas barragens e não protege a sua população que é atingida? Então, ela é fundamental para impedir que novos crimes aconteçam, porque quando você não pune o criminoso, não tenha dúvida, ele vai continuar cometendo crimes, incentivado pela benevolência de não ter sido punido.

Como explicar o crime que aconteceu em Brumadinho, pouco mais de três anos após Mariana? Quer dizer, diante de um crime de altíssimas proporções, a Vale protagoniza mais uma vez outro massacre humano, ambiental e patrimonial de proporções ainda mais graves?

A Vale não se importa com a vida das pessoas. Então ela constrói barragens mais baratas, não cuida da segurança do povo no entorno, mente para as pessoas, porque algumas participam de simulados, são apresentados projetos de emergência que não acontecem. Ela se importa em explorar e aumentar cada vez mais sua taxa de lucros. A qualquer preço.

Há cerca de dois anos acontece um debate sobre a mudança do processo de licenciamento ambiental, cuja legislação visa acelerar e flexibilizar a obtenção das licenças prévia, de instalação e de operação, como foi o caso da ampliação das atividades do complexo Paraopeba, que inclui a Mina Córrego do Feijão, em dezembro de 2018. Qual a gravidade dessa rapidez na aprovação de projetos de grandes impactos como esse?

As mineradoras e a Federação das Indústrias (Fiemg, no caso de Minas) têm um forte poder econômico e político com ramificações nos poderes Executivo, Legislativo e um Judiciário que decide contra as populações atingidas pelo crime em 2015. São processos que deveriam ter um mínimo de debate com a população atingida, e isso não é uma especificidade da Vale. Estamos enfrentando a mesma situação com a Anglo American, em Conceição do Mato Dentro, e também em Sarzedo, com a mineradora Itaminas, que tem barragens que caso rompam atingem imediatamente sete bairros, e isso sem a comunidade ter as informações básicas, sem plano de emergência, de evacuação. Então esse poder econômico faz com que elas atuem livremente, por isso a importância de uma resposta rápida e enérgica enquanto sociedade.

Houve também uma reclassificação dos empreendimentos, no caso, a mina do Córrego do Feijão e a etapa 3 da Anglo American em Conceição do Mato Dentro, que eram para ter uma classificação de nível 6, foram reclassificados como 4. Quais os danos dessa “maquiagem” nas leis e quais os riscos que o Brasil corre se permanecer assim?

As mineradoras se autolicenciam, se autofiscalizam, decidem qual investimento farão em segurança, quando fazem, ou seja, elas se organizam livremente. Nós não estamos falando de pouca coisa, estamos falando de um grande grupo econômico mundial. O capitalismo se organiza nesse momento pela disputa das riquezas, dos recursos de cada país. As mineradoras atuam fortemente no controle da água, por exemplo, que retiram da população – onde tem mineroduto falta água para o povo, mas sobra água para lavar o minério. Por isso precisamos pressionar os poderes a darem respostas.

O MAM está com brigadas de solidariedades desde o acontecimento do crime, e uma delas, no acampamento Pátria Livre, do MST. Vimos uma situação de grande impacto com a devastação do rio Paraopeba, e como isso está afetando gravemente o cotidiano dos acampados e da aldeia Pataxó Rã Rã Rã, que também são atingidos diretamente por esse crime. Qual a tua opinião sobre como a Vale está tratando os atingidos?

A mineradora tem um modo de operação que controla o pós-crime. Ela não se importa em evitá-lo, ela não investe para impedir, mas depois que o crime acontece, ela tem toda uma forma de operar na região para controlar. Por exemplo, o poder público vai depender das informações da mineradora para várias coisas em relação ao crime. A Vale controla a lista das pessoas atingidas, quem é atingido, controlou inicialmente a lista de quem era desaparecido. Se você pegar a sequência, no primeiro dia o número divulgado é muito baixo, no segundo dia é maior, e aos poucos ela vai aproximando-se de uma realidade que ela mesmo disse qual é, exatamente para controlar a comoção.

A questão das indenizações também são mecanismos de controle, porque você tenta impedir a autorganização das pessoas. Você tem uma diversidade enorme de quem está atingido, em um momento de extrema fragilidade emocional, porque são pessoas que perderam seus entes queridos que estavam almoçando, descansando, no ambulatório da empresa. Quando esses crimes acontecessem, você percebe que a mineradora não tem um plano de ação, nem em relação à região, porque ela não tem o impacto de até onde um rompimento de uma barragem sua vai afetar, como não tem preparo ou pessoal para cuidar de todo o processo sem fazer esse controle.

E como fica a esfera entre o público e o privado com relação à assistência aos atingidos?

A iniciativa privada destrói, mata, e quem vem prestar o apoio, a solidariedade e o resgate é o serviço público, que está sendo desconstruído por aqueles que defendem que os licenciamentos são muito burocráticos. Nós estamos em Minas Gerais com o governador Romeu Zema que pensa assim, que é preciso flexibilizar o licenciamento, que as coisas precisam ser mais ágeis porque está relacionado ao desenvolvimento econômico do estado. Isso está sendo dito tanto pelo governador quanto pelo presidente Jair Bolsonaro. Eles começaram o ano com essa pauta de destruição do serviço público, mas quem vai lá cuidar das pessoas é o Sistema Único de Saúde (SUS), a Defensoria Pública, Corpo de Bombeiros, Defesa Civil entre outros.

O controle de informações e do pós-crime pela Vale é um processo extremamente difícil de ser rompido. Como vimos no caso de Mariana, por exemplo, a empresa precisava de uma face social que recebesse o dinheiro, e aí criou a Renova.

A criminosa controla o dinheiro que ela está obrigada a fazer a reparação, e se nós não ficarmos atentos, a Vale vai criar uma Renova II em Brumadinho, para que ela controle os pataxós, cerceie o direito dos acampados trabalhadores sem terra de terem acesso ao mínimo de assistência, controle a relação com as famílias, as informações que vão para a imprensa. Espero que a gente não veja mais esse modo de operação porque espero que esse seja o último crime de mineração aqui no estado.

A atividade mineral é uma das que mais mata no mundo, e o Brasil é o país que mais mata. O crime de Brumadinho já é considerado o maior acidente de trabalho que se tem registro aqui no país.

A Samarco chegou a ter, na época do crime de Mariana, 60% dos trabalhadores terceirizados, e logo depois do crime ela começou a reincidir esses contratos. Então você tem pessoas que perderam, além de suas casas, seus empregos. A reforma trabalhista piorou os já frágeis procedimentos de proteção aos trabalhadores – não se mede o que aconteceu pelo dinheiro, mas é preciso que quem cometa o crime se responsabilize inclusive com indenizações, e até nesse aspecto a reforma trabalhista puniu o trabalhador, comparando-se ao que a comunidade poderá acionar judicialmente. Mas o que eu acho que o mais grave, tanto em 2015 quanto agora, é uma mineradora que não dá o direito de autossalvamento aos seus funcionários. Não tocou uma sirene, não tocou um alerta, as imagens recentemente divulgadas mostram as pessoas correndo, de carro, tentando fugir de um mar de lama.

Explica pra gente um pouco sobre a minerodependência, essa esfera de poder que o setor da mineração atua.

Os municípios que possuem mineração em geral se tornam dependentes ela – muita gente é empregada nela, direta ou indiretamente, e a economia da cidade que gira em torno, seus impostos. Então ela vai utilizar isso pra jogar parte da população, setores, contra uma apuração rigorosa, contra um processo de punição, e chantageando que, caso haja punição, ela não consiga mais operar, pagar os salários.

Nós vivemos isso em 2015, com Mariana, e eu não tenho dúvidas de que ela vai fazer esse processo para voltar a ter controle onde existe mineração. Hoje existe um grande pânico – onde tem barragem em Minas Gerias as pessoas estão em pânico, porque elas entenderam que podem dormir e uma barragem se romper.

E como fica a questão da saúde nos municípios cuja mineração atua, e o repasse da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais a esses municípios?

A mineração atua de forma predatória e não dá retorno. Ela tem uma série de formas de não pagamento, de sonegação, de dever aos municípios. O que ela deprecia daquele município, não retorna. No município de Sarzedo, aqui na Região Metropolitana de Belo Horizonte, tem um bairro em que os caminhões passam com o minério. E aí os problemas de saúde ocasionados por esse pó (a mineradora está lá a quase 60 anos), respirado todo dia, quem vai cuidar é o SUS, que não teve um investimento adequado para responder a essas questões. Mas precisava mesmo todo mundo respirar esse pó por tanto tempo? Esse modelo de barragem é o único? Claro que não é.

Eles escolhem os modelos mais baratos sem se importar com as pessoas. Então é preciso rever todo esse processo sem cair na chantagem das mineradoras, porque elas se tornaram mundialmente ricas às custas dos baixos impostos ou das sonegações que elas praticam. A CPI precisa ser ampla para compreender que esse modelo de mineração predatório e que retira dos municípios não pode continuar.

Tendo em vista o processo de minerodependência aqui no país, não seria também o momento de ampliar ainda mais esse debate e instaurar uma CPI da Mineração a nível nacional?

A mineração está no país, não está só em Minas Gerais, e nós temos um presidente que acha que o problema é a burocracia, que os licenciamentos dificultam a atividade econômica. A CPI está sendo proposta por uma comissão mista, ela é importante para fazer a investigação do ponto de vista nacional, mas também pela contraposição a esse argumento de que o problema é que o licenciamento dificulta o desenvolvimento econômico.

O estado tem que proteger a vida, e é a partir dessa proteção que as coisas se desenvolvem, não a partir da proteção ao lucro da mineradora, agronegócio ou qualquer outro grupo econômico. Essa é uma disputa fundamental porque é nas crises que as mineradoras e o agronegócio vão elevando o lucro e diminuindo investimentos, e a crise econômica que estamos vivendo não é só do Brasil, embora esteja aprofundada por esse pistão de austeridade que o governo Temer fez e que Bolsonaro dará sequência.

Mariana foi um exemplo típico disso: eles aumentaram a produção porque o preço do minério internacionalmente havia caído, e aumentaram a produção, então aumentaram os rejeitos na barragem, que servia para duas mineradoras distintas (o que é ilegal), diminuíram investimento em segurança e aumentaram a terceirização dos trabalhadores. Então essa forma de operar foi lá em 2015 e acontece agora, novamente, em 2019.

Alguma consideração final?

Da mesma forma que a gente pedia “não esqueçam Mariana”, não esqueçam Brumadinho. A Vale vai disputar o controle de todas as CPIs que forem criadas, para que não haja implicações que a comprometam. Temos que exigir processos transparentes para que a gente tenha resultados efetivos. Tem centenas de famílias que esperam respostas de seus filhos, maridos, irmãos, e que talvez não tenham, pela forma como a Vale colocou seus funcionários na beira de uma barragem que estava com problemas.

Nós de movimentos sociais fazemos tantas lutas, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), no enfrentamento desse poder predatório das mineradoras, e eu espero que as pessoas prestem mais atenção quando a gente falar daqui pra frente, porque muita coisa a gente já dizia, alertava, questionava. Nenhuma barragem se rompe voluntariamente, os problemas existiam e estavam sendo negligenciados.

Por Raquel Monteath/Coletivo de Comunicação do MAM