Projeto de mineração Onça Puma – Foto: Divulgação / Vale

Em junho completaram-se 150 dias do crime cometido pela mineradora transnacional Vale S.A. em Brumadinho, Minas Gerais. Os 12,7 milhões de m³ de rejeitos em forma de lama que se espalharam com o rompimento da Barragem I da mina Córrego do Feijão, onde se extraia especialmente minério de ferro, levaram consigo 272 vidas (até o presente momento, 248 mortos já foram retirados da lama e 24 ainda não foram encontrados), entre moradores das comunidades locais e funcionários da empresa.

Com o rompimento, a mineradora também foi responsável pela morte do rio Paraopeba, que hoje se encontra completamente contaminado com metais pesados em função do contato com os rejeitos, e por uma série de outros impactos, como a desestruturação econômica e social de Brumadinho e região. Uma mancha forte e irremovível na imagem da Vale, que antes mesmo do crime em questão, já não gozava de grande prestígio perante a opinião pública em função de inúmeras outras violações que havia cometido no Brasil e no exterior, com as que tiveram maior ressonância estando atreladas à mais um rompimento de barragem de rejeitos, no caso, em Mariana (MG).

Fato é que além dos 150 dias do crime, na última terça-feira também se completaram 150 dias de impunidade, uma vez que a população sobrevivente, mas também atingida (familiares de vítimas e pessoas que perderam tudo com o caos social e econômico que se instalou em Brumadinho), encontra-se à própria sorte, sem qualquer apoio da Vale. Um descaso!

Todavia, mesmo com a gigantesca sombra que hoje paira sobre a mineradora, há quem ainda lute com todas as forças para tê-la por perto, operando em seu território. Um equívoco? À primeira vista pode parecer que sim, porém, por vezes tratam-se de contextos extremamente complexos, que somente podem ser entendidos quando direcionamos nossa lente de análise para a dependência econômica e social que os territórios minerados possuem do setor.

Um exemplo disso vem ocorrendo no município de Ourilândia do Norte, no sul do estado do Pará, onde a Vale extrai e processa níquel desde 2011, no complexo de mineração Onça Puma. Em linhas gerais, esse município de apenas 31 anos, que em 2017 possuía 31.921 habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), desde a implantação do projeto de mineração e processamento de níquel (além da mina, uma usina também foi construída no Onça Puma) – onde a Vale investiu aproximadamente 3 bilhões de dólares – vem direcionando quase que na totalidade sua estrutura socioeconômica para o setor mineral, muito em função da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), que tem sido a principal fonte de arrecadação do município, e pelas janelas de negócios e postos de trabalho que diretamente ou indiretamente emergiram a partir do Onça Puma. Mas qual o problema disso?

Ourilândia do Norte possui parte significativa do seu território composta por Terras Indígenas (TIs) dos povos Xikrin e Mebêngokrê/Kayapó e no dia 17 de junho de 2019, cumprindo decisão judicial expedida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), a Vale suspendeu todas as atividades no Onça Puma justamente porque o desembargador Antônio Souza Prudente, ao julgar um processo movido pelo Ministério Público Federal (MPF), entendeu que o projeto estava impactando de forma significativa os indígenas que vivem na área de influência do mesmo. Mais detalhadamente, desde 2012 a Vale vem sendo alvo de ações judiciais movidas pelo MPF, que pouco tempo após o início da operação de lavra no Onça Puma, começou a denunciar as violações praticadas pela mineradora em Ourilândia do Norte e região que estão recaindo sobre as populações indígenas, com a principal delas sendo a contaminação do rio Cateté, que corta a TI Xikrin do rio Cateté, com metais pesados, o que vem provocando uma série de doenças e até mesmo má formação fetal entre indígenas Xikrin, diretamente impactados, e Kayapó, impactados de forma indireta, conforme interpretação do tribunal.

Porém, mesmo com a suspensão total das atividades no complexo Onça Puma tendo ocorrido somente há poucos dias, como dito antes, desde 2012 o MPF vem movendo ações contra a Vale em função dos impactos provocados pelo projeto sobre os povos Xikrin e Kayapó e a empresa, por sua vez, sofrendo constantes derrotas na justiça, inclusive no Supremo Tribunal Federal (STF). Assim sendo, a decisão proferida pelo TRF1 mencionada acima consiste na 6ª vez em que a justiça brasileira determinou a paralização das atividades no Onça Puma (e na 3ª decisão proferida pelo TRF1).

Fazendo um pequeno resgate, em 26 de fevereiro de 2019, após análise de uma ação civil pública movida pelo MPF, o TRF1 determinou a paralização imediata das operações no complexo Onça Puma, ordem que foi descumprida pela mineradora, conforme denunciaram organizações indígenas e apuraram peritos convocados pelo tribunal em questão, durante visita feita ao projeto de mineração. Em função disso, o desembargador já mencionado determinou que a empresa deveria pagar multa diária de R$ 100 mil reais por descumprimento da ordem judicial, aumentando-a, depois de nova resistência da Vale em cumprir a determinação, para R$ 200 mil/dia Fato é que em 14/06/2019, o MPF soltou uma nota afirmando que a usina de processamento de níquel seguia operando normalmente e o TRF1 endureceu e fez a Vale paralisar de fato todo o complexo de mineração.

Se por um lado, a determinação do TRF1 significou justiça feita para os povos indígenas Xikrin e Kayapó, que há muitos anos estão sofrendo com as violações cometidas pela Vale no sul e sudeste do Pará. Por outro, a paralização do complexo Onça Puma vem sendo profundamente sentida por parcela expressiva da população não indígena de Ourilândia do Norte e região, que hoje se encontra fortemente dependente do setor mineral.

Exemplificando através de números, em nota divulgada no dia 18 de junho de 2019, a prefeitura de Ourilândia do Norte comunicou que estava demitindo 250 servidores municipais e que planejava fechar uma escola e dois postos de saúde por não possuir condições de arcar com tais custos sem receber os recursos oriundos da CFEM, que na média vinham significando R$ 2 milhões mensais para os cofres do município. Também foi ventilado pela administração municipal que as obras do Hospital Regional de Ourilândia do Norte, projetado para possuir 120 leitos, seriam suspensas em função da escassez de verbas, prejudicando também os municípios de Xinguara, Água Azul do Norte, Tucumã e São Félix do Xingu. Além disso, em 29 de maio do presente ano, a Vale afirmou que dos 2.500 postos de trabalho ligados à mineração Onça Puma (diretamente ou através de empresas terceirizadas) que chegaram a existir no auge da operação de lavra, somente 500 estavam ativos. Um verdadeiro caos!

Trata-se de um cenário que tem gerado muita incerteza em Ourilândia do Norte e que tem feito o município cair em uma profunda depressão econômica e social. São os reflexos da dependência do setor mineral, que é capaz de produzir situações verdadeiramente contraditórias, como o clamor popular pelo “retorno” da Vale à região, mesmo em um cenário onde muitos, mundo à fora, dariam tudo para tê-la bem longe. Lembremos de Brumadinho.

Foi o que aconteceu há duas semanas atrás, no dia 12 de junho, quando um grupo de manifestantes, sob influência da elite local de Ourilândia do Norte e região (fazendeiros, empresários, entre outros), fez um bloqueio na PA-279, que conecta Xinguara à São Félix do Xingu, exigindo que o judiciário revesse sua posição e liberasse a retomada da lavra no projeto Onça Puma. Obviamente, acusando os povos Xikrin e Kayapó de serem contra o “desenvolvimento” e não olhando para as violações cometidas pela Vale contra os indígenas em questão, que de fato foram a causa da suspensão do projeto.

A situação confrontada em Ourilândia do Norte deixa evidente que não importa quantas vezes a empresa será demandada judicialmente não iremos jamais avançar [já estamos no limite do tolerável] com a subserviência à mineração industrial sem rever o modelo mineral em sua fase senil, sem de fato construirmos outras prerrogativas, que instaure outro modelo de mineração. A ruína territorial e de suas civilizações não deve ser a nossa única sorte!

por Marcelo Barbosa e Charles Trocate
Integrantes do Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM)