Em plena pandemia, Prefeitura e CODEMA ignoram estudos técnicos e dão sinal verde para a mineradora Herculano

*Por Coletivo de Comunicação do MAM Nacional

Em mais um exemplo de total descaso e desmonte da máquina pública, a situação vivida na cidade histórica do Serro, na região centro-nordeste de Minas Gerais, ganha novos e preocupantes capítulos. Em plena pandemia mundial do coronavírus, em que diversas atividades presenciais estão suspensas por medidas internacionais de segurança, o município vive a ameaça de danos ao abastecimento de água e ao seu patrimônio arqueológico, com a pretensa chegada de um projeto de exploração de minério de ferro, dessa vez da empresa Herculano.

O atual presidente do Conselho Municipal do Desenvolvimento do Meio Ambiente (CODEMA) Serro, Carlos Silveira Dumont, pretende reverter a decisão da ex-presidenta Vanessa Terrade que anulou, exercendo o princípio da Autotutela, com base na súmula 473 do Supremo Tribunal Federal (foto), a Declaração de Conformidade conferida à Herculano. Emitida em abril de 2019, fruto de reuniões irregulares, o documento confere à mineradora que ela preenche os requisitos essenciais da legislação do município para explorar a área. Nessas reuniões irregulares, membros do CODEMA chegaram a afirmar que quem deve tratar do assunto é a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD) de Minas Gerais.

Porém, a história não é bem assim. Também em abril de 2019, o então presidente do CODEMA, Paulo Procópio, renunciou as funções conselheiro e diretor do Conselho por não concordar com o curso que os fatos foram tomando – haviam no Projeto Serro fortes evidências de irregularidades e danos ao patrimônio arqueológico, além da ameaça à Bacia do Rio do Peixe, principal fonte de abastecimento da região.

“Não existe a possibilidade da mineração não causar impactos. Não são apenas nos recursos naturais, mas sobre o próprio homem: ele causa e sofre o dano. Minerar é retirar vegetação, alterar o solo para se chegar ao bem minerado. Então você vai afetar sim o lençol freático, e isso vai ter uma ação direta sobre os rios, além do despejo de rejeitos e diversos outros problemas”, afirma Alessandra Vasconcelos, professora de Engenharia Geológica do Instituto de Ciências e Tecnologia da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).

A ANÁLISE DO RELATÓRIO: Proposta de atividades de retirada de minério de ferro, elaborada por Alessandra, reforça que a mineradora Herculano viola os artigos 3º, 4º e 6º do atual Plano Diretor (Lei Complementar Municipal n.º 075/2007), as leis municipais 1.815 e 1.816, que institui o CODEMA, e deixa claro que é de responsabilidade do município e do Conselho verificar os possíveis impactos sobre os recursos hídricos locais. “Não tem como só um elemento do meio ambiente ser impactado, normalmente você tem um encadeamento. A empresa fala que a cava vai atingir ‘apenas’ uma profundidade de 30 metros, mas isso já é o suficiente para se ter um estrago, porque como eu disse você já tem a retirada da vegetação e do solo”, afirma Alessandra.

No documento, a pesquisadora analisa informações presentes também no relatório técnico elaborado pelo Dr. Paulo Rodrigues, do Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear (CDTN), órgão vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e Frederico Gonçalves, pesquisador do Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Se eu apresento um documento que está falseando vários elementos, então estou em desconformidade. Porque as pessoas devem acreditar que o empreendimento não vai causar impacto ambiental? No caso do Serro, não há um jogo aberto com a população. Se tem impacto sobre as águas superficiais e subterrâneas, você tem um descumprimento sobre as leis municipais, isso não está certo”, conclui.

A ANÁLISE CRÍTICA: Projeto Serro – Hidrogeologia (águas subterrâneas) e Espeleologia (cavernas) aponta diversos aspectos de contradição da mineradora que desrespeitam as Áreas de Preservação Permanente (APPs) e impactam as camadas hidrogeológicas da região. Além de interferir na segurança das águas subterrâneas, a Herculano também não menciona a supressão de mata (provavelmente nativa, o que é um fato em caso de licenciamento), além do principal – a omissão de todos esses problemas no documento técnico da mineradora, caracterizando mais uma vez a falta de lisura e incompletude dos dados. “Existem mentiras técnicas neste documento. É um ninho de problemas, porque simplesmente não existe mineração sem impacto ambiental”, afirma Paulo.

Em trechos do relatório, os pesquisadores afirmam que há uma tentativa clara de ludibriar a população quando a mineradora afirma que não existirá ‘barragens de rejeitos’, porém admite-se que haverá ‘pilha de rejeitos’ e uma ‘barragem para contenção de sedimentos’. “A empresa afirma uma coisa e desmente com os próprios dados que, quando processados, não batem com os mapas que ela própria apresenta. Ou seja, estamos falando de inconformidades com a legislação ambiental, principalmente na parte do impacto nas cavernas, e isso compromete a idoneidade do empreendedor, porque não há compromisso com a verdade”, diz Paulo.

Os estudos foram solicitados aos especialistas pelo conselheiro Marcelo Mesquita Machado, representante da sociedade civil, diante de dúvidas e da necessidade do CODEMA compreender as questões técnicas do documento apresentado pela empresa. O conselheiro aponta que o empreendimento também não está em conformidade com os artigos 34°, 39° e 41° do Plano Diretor vigente e a Lei de Uso e Ocupação do Solo, que divide o município em macrozonas e regulamenta sobre quais tipos de atividades podem ser realizadas na zona rural.

Segundo a legislação municipal, a única região em que é permitida explicitamente a extração mineral é na Zona de Exploração Mineral (ZEM). “Apenas parte da área que a mineradora pretende explorar está na ZEM. Mesmo assim, essa área também recebe o tratamento de ZIS (Zona de Sobreposição de Interesse), pois localiza-se nas proximidades do Rio do Peixe. Nessa zona, é necessário considerar o zoneamento econômico-ecológico para verificar a ocorrência de áreas a serem preservadas, e isso não foi considerado nas discussões sobre a conformidade do projeto”, analisa Marcelo.

Outro ponto de desacordo é que o projeto está localizado em Área de Interesse Ambiental, na zona de amortecimento do Parque Estadual do Pico do Itambé, o que implica em restrições à atividade minerária. “Nas análises do CODEMA para solicitações anteriores a do grupo Herculano, a interpretação aplicada pelo Conselho considerava todos estes argumentos como válidos. Mas hoje, sem explicação e sem fundamentação técnica, a maioria dos conselheiros resolveu adotar outra postura e concordar com argumentos da empresa que distorcem e fragmentam a legislação”, conclui.

Os apontamentos feitos por Marcelo foram confirmados no parecer jurídico do Dr. José Luiz Quadros de Magalhães, renomado jurista e constitucionalista mineiro, que foi requerido pela conselheira Cleide Greco para orientar as discussões do Conselho.

 

CORONAVÍRUS – Está cada vez mais claro que, além de não trazer benefícios ao município e violar a legislação vigente, a mineração coloca a população do Serro em risco também nesse contexto de pandemia. No município vizinho, Conceição do Mato Dentro, está em operação o projeto Minas-Rio, da mineradora Anglo American, que tem sido o principal vetor de disseminação do coronavírus na região. “É um absurdo gestores públicos e pessoas que deveriam representar a população se utilizarem deste momento, em que os casos da Covid-19 no Serro e região aumentam de forma disparada, para beneficiar uma empresa que apresentou um projeto com informações falsas, que ameaça a segurança hídrica e o futuro da cidade. Estas pessoas estão colocando o Serro à venda em um momento em que toda a população encontra-se fragilizada, preocupada com seus familiares e com seus futuros”, afirma Juliana Deprá, da coordenação estadual do MAM-MG.

A água ganha então, sobretudo neste contexto, uma centralidade ainda maior, pois é essencial na produção de alimentos além de ser uma medida básica para garantir a higiene, que é a principal forma de se prevenir e evitar a contaminação pelo coronavírus. “É inadmissível que o poder público aceite autorizar a entrada de um empreendimento desses, que coloca em risco a segurança da população serrana”, reforça Juliana.