A Medida Provisória (MP) 759, que trata da regularização fundiária urbana e rural, foi aprovada com extrema rapidez na quarta (24), enquanto todas as atenções estavam voltadas ao “Ocupa Brasília”. Transformada agora em lei, a proposta do governo golpista de Michel Temer (PMDB) promove profundas alterações em uma série de leis que resguardam políticas públicas ao direito de acesso à terra e à cidade, afirma Sergio Sauer, professor do programa de pós-graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural da Universidade de Brasília (UnB).
“O objetivo é atender ao mercado de terras e à expansão dos negócios, especialmente a expansão das fronteiras agrícolas a partir do modelo hegemônico de desenvolvimento agropecuário, resultando em mais concentração fundiária, exclusão e expropriação da população pobre do campo”, interpreta o professor.
Ele ressalta que a MP 759 não pode ser analisada de forma isolada e afirma que propostas como a MP 756 e 758 visam beneficiar os interesses de especuladores e o setor do agronegócio. As duas foram aprovadas nesta terça, também com extrema agilidade.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: A comissão mista aprovou o relatório do senador Romero Jucá (PMDB-RR) sobre a Medida Provisória (MP) 759/2016, que trata da regularização fundiária rural e urbana, quais os principais pontos o senhor poderia destacar desse relatório?
Sergio Sauer: Tanto o relatório (mais de 500 páginas) como o Projeto de Lei de Conversão [PLV, que é a versão alterada da MP], publicada no último dia 12, são extremamente longos e mudam uma série de leis. O PLV altera textos de sete ou oito leis, sendo as principais justamente a Lei da Reforma Agrária (Lei 8.629), de 1993, e a lei do Terra Legal (Lei 11.952), de 2011, além de vários dispositivos sobre a regularização fundiária urbana. Estes últimos alteram significativamente a Lei 11.977/2009 [que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas] e vários avanços alcançados em termos de direitos à cidade.
Diante deste emaranhado de mudanças, é difícil nomear as principais, mas destaco algumas relacionadas ao campo:
a) mudanças profundas na lei da reforma agrária, especialmente sobre a titulação dos lotes (inclusive abrindo a possibilidade de comercializar os lotes) e a seleção de famílias;
b) mudanças no programa Terra Legal, especialmente a ampliação do limite de 15 módulos (ou máximo de 1500 hectares) para 2500 hectares e regularização de terras para além da Amazônia Legal.
Quero chamar a atenção para dois pontos que simbolizam as reais intenções de todas essas mudanças. Em primeiro lugar, o relatório/PLV, de autoria do senador, abre a possibilidade de as famílias assentadas “celebrarem contratos de integração”, conforme o dispositivo da Lei 13.288/2016, que trata justamente de contratos de integração, o que contraria a proposta original da Lei Agrária. Esta associava o direito à terra ao compromisso da família de cultivá-la, proibindo-o de ceder ou de dar direito de uso a terceiros.
Na mesma toada, abre possibilidades de regularizar áreas pelo Terra Legal em que a exploração direta é feita “com ajuda de terceiro… por meio de pessoa jurídica” e com “exploração indireta”. Em outras palavras, serão regularizadas terras “gerenciadas, de fato e de direito, por terceiros” (termos do PLV), inclusive empresas. Estas formulações, no mínimo, abrem possibilidades para a legalização de laranjas, ou seja, a regularização de áreas por pessoas sem qualquer vínculo efetivo com as terras.
Na sua análise, o que está por trás dessa medida?
Historicamente, assuntos relacionados a terras e direitos territoriais são bastante complexos. Há muitos interesses na emissão desta MP, associada a uma enxurrada de emendas parlamentares, complementadas com o relatório e projeto de conversão.
Utilizando o argumento ou justificativa de “responder ao Tribunal de Contas da União” [TCU, justificativa dada pelo governo], me refiro ao Acordão do TCU que, ao investigar os programas governamentais de reforma agrária, encontrou irregularidades mas, em vez de exigir ações do Executivo para sanar essas, paralisou todo o programa.
Em 2016, o Executivo emitiu a MP com alguns objetivos: por exemplo, ao enfatizar a titulação – e consequentemente “consolidar” os projetos de assentamentos – , há uma desoneração do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], no qual os projetos consolidados deixam de ser de responsabilidade do órgão e, simultaneamente, transforma as terras destinadas para a reforma agrária em alienáveis, ou seja, as torna negociáveis.
Associado a isto, é fundamental perceber que a MP permite o pagamento, em caso de desapropriação para fins de reforma agrária, a preço de mercado da terra nua. Ou seja, se já era um bom negócio não cumprir a função social, agora a “penalidade” será o pagamento em dinheiro. Isto é ainda associado com institucionalização dos juros compensatórios, ou seja, o desapropriado irá receber por possíveis diferenças entre o valor depositado em juízo pelo Incra no processo de desapropriação e o valor fixado na sentença definitiva dos processos judiciais.
Além disto, a ampliação do Terra Legal – não só em relação ao tamanho das áreas passíveis de regularização, que subiu para 2500 hectares, mas também estendendo o programa para todo o país – atende a interesses da bancada ruralista e de setores especulativos, que se beneficiam com a regularização e aquecimento do mercado de terras!
Concluindo, é fundamental não olhar a MP 759 isoladamente, pois há um conjunto de medidas (como as MP 756 e 758) que atacam direitos, de um lado, e beneficiam especuladores e o agronegócio de outro.
Da CPI da Funai/Incra – e seus indiciamentos absurdos – ao cancelamento de parque estadual para beneficiar ministro detentor de terras, passando por essas MPs, o objetivo é atender ao mercado de terras e à expansão dos negócios, especialmente a expansão das fronteiras agrícolas a partir do modelo hegemônico de desenvolvimento agropecuário, resultando em mais concentração fundiária, exclusão e expropriação da população pobre do campo.
Como já mencionado, a MP prevê alterações na Lei nº 8.929/1993 (Lei da Reforma Agrária) e na Lei nº 13.001/2014 (sobre créditos de famílias assentadas). Há ainda mais retrocessos?
Alguns elementos chamam a atenção; parte no texto original da MP, parte no projeto de conversão aprovado no Congresso. Um deles é a definição de projeto de assentamento consolidado. Diferentemente da lei em vigor, o Projeto de Conversão estabeleceu 15 anos para que o Projeto de Assentamento (PA) seja considerado consolidado, independentemente das famílias terem recebido os créditos e de o Incra ter feito os investimentos de infraestrutura exigidos pela lei de 1993. Isto é um profundo retrocesso nas já frágeis políticas de consolidação dos projetos.
De acordo com o texto do PLV, os ocupantes irregulares, ou seja, aqueles que não se enquadram como beneficiários, serão notificados para desocupar a área. Além de apenas notificar todos aqueles que ocupam, “lotes sem autorização do Incra” poderão ser regularizados, desde que não haja vedação –outro artigo impede o acesso a lotes por servidores públicos e outros poucos casos.
Estes dispositivos permitirão uma regularização em massa, sem qualquer mecanismo efetivo para coibir abusos e retomar lotes que estão em mãos de pessoas que, efetivamente, não se enquadram nos programas de reforma agrária.
Ainda em relação às mudanças, é fundamental entender que a MP/PLV ignora solenemente a demanda social. A histórica luta pela terra, particularmente a demanda social expressa na organização e criação de acampamentos, é desconsiderada.
A MP estabelece claramente um protagonismo estatal (apenas quando convém obviamente), pois caberá ao Incra, única e exclusivamente, chamar, pontuar, selecionar ou excluir as famílias candidatas, sem qualquer reconhecimento da demanda e luta por direitos.
A regularização fundiária do Programa Terra Legal na Amazônia (Lei 11.952/2009) também sofre alterações. Que riscos a MP759 trará para região amazônica?
Conforme mencionei anteriormente, a ampliação do Programa para todo País é um grande problema, especialmente considerando que todas as áreas até 2500 hectares serão contempladas. Além disto, o PLV foi ainda mais generoso que os termos da MP, pois os pagamentos dos imóveis acima de um módulo fiscal (abaixo deste são isentos) serão de, no máximo 50% do valor de mercado da terra nua. Além dos riscos de regularizar a grilagem – já denunciados em vários estudos sobre o Terra Legal na Amazônia –, os beneficiários irão pagar apenas a metade do valor em áreas de até 2500 hectares.
Em relação aos custos da terra na regularização, é interessante notar que serão calculados “com base nos valores de imóveis avaliados para a reforma agrária“. Diferentemente das desapropriações para fins de reforma agrária, em que os pretensos proprietários sempre recorrem à Justiça exigindo valores mais altos – inclusive na certeza de juros compensatórios por terras que não cumprem a função social –, os valores a serem pagos na regularização serão mais baixos.
Ainda em caso de pagamento integral do imóvel, são extintas as cláusulas resolutivas, ou seja, não haverá qualquer restrição (lógica da propriedade privada). Mas foram revogadas as obrigações e punições (no caso de descumprimento com a reversão da concessão do título) relacionadas ao desmatamento de Área de Preservação Permanente (APP) e Reserva Legal.
Na prática, significa que a regularização de posses (sempre lembrando que está tratando de áreas de até 2500 hectares) não estabelece nenhuma restrição ambiental, como usar a regularização para coibir o desmatamento na Amazônia. Aliás, foi um dos grandes argumentos para instituir o Terra Legal!
Concluindo, eu diria que a MP e o PLV ampliam as possibilidades de grilagem em áreas até 2500 hectares, abrindo nova formas como a regularização de áreas que não são, efetivamente, utilizadas pelas famílias requerentes via contratos de “integração”, exploração por empresas, entre outras artimanhas.
Por Lilian Campelo/Brasil de Fato
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