“Em 1992, o serviço era tipo serviço escravo mesmo. Não tinha maquinário, não tinha equipamento de segurança. Entrava e trabalhava com perfuração seca mesmo, no braço mesmo, onde se expunha a pegar ´poeira`[2].”[3]

O relato supracitado faz parte do documentário “Tantos e Quantos: os mineiros do Morro Velho” e pertence a um ex-trabalhador da mineração. O documentário conta a história dos ex-trabalhadores da Mina de Morro Velho, atualmente pertencente à mineradora Anglo Gold Ashanti. Localizadas em Nova Lima (MG) e região, as Minas de Morro Velho têm estreito vínculo com o trabalho escravo. A extração de ouro começou no primeiro quarto do século XVIII e passou quase todo o século XIX nas mãos da empresa inglesa Saint John Del Rey Mining Company.

Durante o século XIX, a exploração do trabalho escravo foi bastante lucrativo para o capital inglês, obtendo o maior lucro dentre todas as empresas inglesas no Brasil e uma dos maiores na América Latina (LIBBY, 1984). O trabalho escravo foi empregado até 1886, quando um desabamento paralisou as atividades da mina enterrando pra sempre milhares de negros escravizados nas entranhas da Morro Velho. A mina volta ao funcionamento apenas após a abolição da escravidão, em 1891, e manteve-se em funcionamento até 2003.

 

A escravidão foi abolida no Brasil em 1888, mas suas chagas ainda são sentidas em nossa sociedade. Sua presença pode ser notada na sede da própria Anglo Gold Ashanti, em Nova Lima, instalada em uma antiga e bem preservada Casa Grande. Ainda hoje, é possível ler o nome “Casa Grande” abaixo do nome da empresa na placa de entrada da sede. A Senzala, que estava localizada ao lado da Casa Grande, foi aterrada. Os ex-trabalhadores da empresa ainda denunciam os efeitos da superexploração do trabalho a que foram submetidos nos túneis subterrâneos da mina. Os mineiros trabalhavam sem equipamentos de proteção, expostos às variações de temperatura, aos desastres, às explosões, e principalmente à silicose, doença pulmonar que acometeu milhares de mineiros. Nesta dicotomia entre esquecimento e retorno, a escravidão ainda se encontra presente no Brasil.

Para o sociólogo Jessé de Souza, a escravidão é o fio condutor da sociedade brasileira, “o elemento definitivo que nos marca como sociedade até hoje”. Essa burguesia dependente, nos termos utilizados por Ruy Mauro Marini, busca, em momentos de recessão econômica, aprofundar a exploração da força de trabalho para compensar, assim, a queda de seus lucros causados pelo arrefecimento do ritmo da economia. Esta burguesia é dependente porque aprofunda esta exploração enquanto sócio menor do capital estrangeiro e intensifica a extração de recursos naturais e a exploração do trabalhador.

O Governo Temer é um autêntico representante desse afã escravizador. Dois casos recentes demonstram o esforço por parte da elite brasileira e seus representantes em jogar o trabalhador às mais indignas condições de trabalho. Uma Portaria recentemente publicada pelo ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, dificulta a caracterização e fiscalização do trabalho escravo.  Antes da portaria, o trabalho era caracterizado por quatro elementos, isoladamente ou em conjunto: condições degradantes de trabalho (incompatíveis com a dignidade humana), jornada exaustiva (em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho), trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito). Já a Portaria caracteriza trabalho análogo à escravidão apenas quando o trabalhador for obrigado a permanecer no local de trabalho.

Tal medida contraria o previsto em tratados internacionais e o artigo 149 do Código Penal. A Portaria foi suspensa, em caráter liminar (temporário), pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo a ministra, “a escravidão moderna é mais sútil e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos”. Entretanto, o ministro da Fazenda já declarou que a portaria não será revogada[8]. Como resultado, o Brasil deixou de ser considerado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como exemplo no combate ao trabalho escravo.

O Segundo caso é o imbróglio envolvendo a “Lista Suja”, que cataloga os empregadores acusados de submeter trabalhadores a condições análogas à escravidão e que tiveram todos os seus recursos de defesa, na esfera administrativa, negados – o que os faz permanecer na lista por dois anos. Nascida em 2007, a “Lista Suja”, ou Cadastro de Empregadores, serve como parâmetro para a negação de empréstimos, contratos e créditos por empresas e bancos públicos. O responsável pela divulgação da lista, André Roston, chefe da divisão de combate ao trabalho escravo, foi exonerado no início de outubro, quando a lista deveria ter sido publicada. A exoneração denota divergências sobre a divulgação da lista. Porém, a lista referente a 11 de maio de 2016 vazou pela imprensa. A lista cataloga 132 empregadores.

Destaca-se na lista a presença da Diedro Construções e Serviços Ltda. A Diedro é uma empresa que presta serviços, em Conceição do Mato Dentro (MG), para a mineradora Anglo American. Na ocasião, em obra do Projeto Minas-Rio, foram encontrados 173 trabalhadores em condições análogas à escravidão. Trata-se de trabalhadores haitianos e oriundos do Sergipe. A Anglo American e outras 23 empresas terceirizadas foram denunciadas por jornada exaustiva, situação degradante, terceirização ilícita, irregularidades no banco de horas, contratação de pessoas jurídicas para burlar a legislação e não pagamento de direitos trabalhistas, dentre outros. Outros 185 trabalhadores das empresas Tetra Tech, Construtora Modelo, Milplan e Enesa, sendo 67 trabalhadores considerados contratados diretos da Anglo American, foram encontrados na mesma obra em situação de jornada exaustiva, chegando a trabalhar por 88 dias seguidos e registrando até 18 horas diárias.

A “Lista Suja” conta ainda com a presença de outras empresas terceirizadas pela Vale no Pará. O estreito vínculo entre atividade mineradora e escravidão é histórico e atual. Graças às grandes mineradoras e à elite brasileira em geral, o país continua soterrado no Morro Velho da escravidão.

Por Tádzio Peters Coelho, integrante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e pesquisador do PoEMAS.

Foto: Ricardo Funari


Notas:

[2] Referência à doença pulmonar silicose. A doença atinge trabalhadores de mineração subterrânea que respiram o pó da sílica. A silicose é uma doença irreversível, decorrente da inalação da poeira da sílica.

[3] Depoimento dado por ex-trabalhador da Mina de Morro Velho, agosto de 2012, Raposos (MG)

Referência Bibliográfica:

LIBBY, Douglas Cole. Trabalho Escravo e Capital estrangeiro no Brasil: o caso de Morro Velho. Ed. Itatiaia: Belo Horizonte, 1984.