A Articulação Antinuclear Brasileira promoveu, no último sábado (24), uma roda de conversa com o tema “Deixe o dragão dormir: não à mineração de urânio e fosfato em Santa Quitéria-CE”. Na ocasião foi lançada oficialmente a nota de posicionamento contrária à retomada do projeto de mineração de urânio e fosfato no sertão central cearense, elaborada por grupos, entidades e movimentos da sociedade civil contrários à nova tentativa de exploração mineral. A mediação do debate foi feita por Erivan Silva, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM).

O Projeto Santa Quitéria, um consórcio entre as Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e a empresa privada FOSNOR – Galvani S/A, está há mais de dez anos pleiteando a obtenção de licença ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para a implantação de uma unidade de extração e beneficiamento de urânio e fosfato na região, visando a produção de energia nuclear e de fertilizantes químicos e ração animal para o agronegócio.

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A mina de Itatiaia, localizada na Serra do Machado em Santa Quitéria, na nascente do rio Groaíras, ao lado de onde se pretende instalar a usina nuclear. “A falácia era de que iriam gerar 1.000 empregos para a comunidade. Ainda que isso fosse verdade, precisaríamos nos perguntar: que tipo de emprego? Para quem? Qual é o resultado de todo esse processo?”, indaga Antônia Ivoneide (Neném), assentada da Reforma Agrária do Movimento das Trabalhadoras e Trabalhadores Sem Terra (MST) e Via Campesina, que participou da roda de conversa.

Para além do alto risco e impacto do urânio e fosfato, que têm meias-vidas de milhares de anos (quantidade de tempo em que uma amostra de elemento radioativo leva para reduzir-se à metade), apresentando um risco ambiental e humano sem precedentes, o trabalho precarizado e os riscos de intoxicação e de adoecimento seriam uma realidade para os moradores da região. “Não nos enganemos: os trabalhos mais qualificados ficariam para quem vem de fora. É um ato irresponsável e inconsequente que o governador do Ceará permita esse projeto”, aponta Antônia.

O debate contou ainda com a participação do advogado popular João Alfredo, presidente da Comissão de Direito Ambiental da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/CE) e professor de Direito Ambiental, que elucidou alguns pontos quanto aos riscos do empreendimento. “O estudo prévio de impacto é justamente para saber se é justificável do ponto de vista econômico, social e ambiental um projeto. É preciso levar em consideração as comunidades na área de influência direta e indireta. Uma das questões fundamentais é exigir uma consulta livre, prévia e informada, como uma pré-condição para esse licenciamento”, conta o advogado.

No termo de referência do Ibama o empreendimento está previsto para 26 anos na região. Próximo das eleições municipais, um dos aspectos levantados pelos participantes do debate foi sobre o governador do Ceará, Camilo Santana, não voltar seu olhar para as necessidades dessas comunidades. “Não é esse o tipo de desenvolvimento que a gente quer ver no estado do Ceará. Nós temos alternativas de geração de energia sustentáveis, como a solar”, ressalta João.

Outra presença na roda de conversa foi a de Maria Joselenes, militante do MAM e diretora da FAPE da comunidade de Lagoa do Mato – Itatira. Ela mora a 15 km da jazida.

“O que mais tememos é o aumento no índice de câncer e, também, a contaminação dos nossos alimentos. É como se a gente visse nossos sonhos indo embora. Em Caetité, na Bahia, os agricultores falam que os produtos passaram a não ter mais valor por conta da contaminação do solo. Isso nos preocupa muito”, conta, referindo-se à Unidade de Concentração de Urânio da INB que lá funciona.

Para a professora Raquel Rigotto, do Núcleo TRAMAS da Universidade Federal do Ceará (UFC), a principal preocupação é com relação à saúde no território. “Eles falam que o urânio é só uma pedra, isso é uma informação perversa e irresponsável. Quem está certo é o povo que diz que esse dragão não pode acordar. O urânio é altamente instável, ele se modifica, tem uma cadeia de decaimento que vai se transformando em outros elementos, ou seja, ele emite radiação o tempo inteiro. O que nos preocupa não são apenas esses 26 anos em que o empreendimento vai funcionar. O grande perigo é que esse dragão está quieto ali embaixo da terra e lá deve ficar”, pontua.

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As pilhas de rejeitos ainda vão conter urânio e seus ‘filhos’, é o que explica Rigotto. Se isso permanece, a emissão de radiações continua. Estamos falando de meias-vidas de 8.000 mil anos ou mais, e da segunda maior causa de morte no mundo depois do cigarro. O concentrado de urânio também é chamado de yellow cake (bolo amarelo). “Esse urânio e seus ‘filhos’ provocam abortos, malformações congênitas, depressão do sistema imunológico, retardo físico e mental em crianças, que são até 40 vezes mais sensíveis à radiação que os adultos, além de serem altamente cancerígenos para todos”, alerta.

Outro ponto levantado na live foi que nos estudos anteriores, de 2014, eles não conseguiram deixar claro em que medida o fosfato vai ser separado do urânio. “O fosfato será usado em produtos químicos de fertilizantes químicos, que será muito usado pelo agronegócio. Estamos falando de fertilizantes com radiação, e é impossível reparar esse estrago a nível de saúde pública no futuro”, conta Rigotto.

A elevada demanda hídrica do projeto diante do contexto de ocorrência frequente de secas no semiárido e o risco de contaminação por metais pesados e elementos radioativos de bacias hidrográficas da região são alarmantes com esse projeto.

“Chamamos essas pessoas de ‘nucleopatas’, é uma forma nova na Psicologia que classifica as pessoas que perderam o mínimo do bom senso. Já listamos os horrores que podemos ver aqui em Santa Quitéria. A Articulação Antinuclear da qual faço parte está trabalhando em todos os setores do que chamamos ‘ciclo do urânio’. Nos anos 1950 a ideia era fazer a bomba atômica brasileira, com as usinas nucleares de Angra 1 e Angra 2. Em Minas Gerais, em Poços de Caldas, só restou um buracão e restos da mineração. Essas barragens são as mais perigosas por conta de seus elementos radioativos”, pontua o ativista social e da Articulação Antinuclear Brasileira, Chico Whitaker.

No pedido de licenciamento, os empreendedores invisibilizam a existência de comunidades que vivem no território, que estão sendo privadas do seu direito à consulta livre, prévia e informada sobre o projeto. Além disso, omitem também os riscos do transporte rodoviário e das operações portuárias do material radioativo que será escoado pela região metropolitana de Fortaleza, o que faz com que os riscos de contaminação se expandam para além do entorno imediato da mineração. “Vai infestar a terra. Depois, não dá mais para juntar, isso vai circular na agricultura e vai até o fim do mundo. É uma das causas mais sérias que o mundo enfrenta”, ressalta Chico.

ARTICULAÇÃO ANTINUCLEAR DO CEARÁ – A Articulação Antinuclear do Ceará surge em 2011 para junto com as comunidades construir diversas pesquisas participativas sobre os riscos desse projeto, realizar pareceres técnicos e recomendações ao Ministério Público Federal, à Defensoria Pública da União e ao Ibama atestando a inviabilidade social e ambiental do empreendimento. Em 2019, o Ibama negou o pedido de licença ambiental, reconhecendo a sua inviabilidade socioambiental. Porém, agora se processa uma nova investida no empreendimento e um novo pedido de licenciamento foi apresentado ao Ibama.

Mais de 150 entidades, grupos e movimentos assinam a nota intitulada “Santa Quitéria é território livre de mineração de urânio e fosfato” e expressam seu posicionamento contrário à nova tentativa de exploração, considerando que permanecem sem resposta adequada às principais questões que demonstram a inviabilidade do empreendimento.

“Desistir da luta é conceder a vitória a eles desde já. Apesar de tudo, não percamos o sorriso. O que eles não suportam em nós é a capacidade de sorrir, que vem da certeza de estarmos do lado certo da luta. O dragão deve continuar dormindo”, conclui Rigotto.