Por Iyalê Tahyrine*, Jarbas Vieira** e Thays Carvalho***

“Nós mostramos que somos 
somente dignos de pertencer ao paiz livre
que quizeramos ver fundado.
Ha muitos annos que foi collocada
a primeira pedra do grande edifício,
mas nós chegamos ainda á tempo
de lançar os nossos obscuros nomes
nos alicerces de uma nova pátria”
Manifesto da Sociedade Brasileira contra a Escravidão, 1880

O mês de novembro, especialmente o dia 20, é marcado pelas celebrações do dia da consciência negra e pela denúncia da persistência do racismo na sociedade brasileira. A origem desta data está associada à luta do movimento negro que sugeriu, por iniciativa do Grupo Palmares do Rio Grande do Sul, na década de 70, este dia em memória a Zumbi dos Palmares e à luta negra no país, em contraposição ao 13 de maio, dia da assinatura da Lei Áurea. Mais tarde, a data foi reconhecida pelo Estado brasileiro através da Lei n.° 10.639/2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino da “História e Cultura Afro-Brasileira” e o 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra, além da lei n.° 12.519/2011, que o consolidou como o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra.

“Nascer negro é consequência, ser negro é consciência” (Zumbi dos Palmares).

Partindo das palavras de Zumbi, este artigo é um convite à reflexão sobre as raízes profundas do racismo no Brasil e sobre a necessidade de tornarmos a luta antirracista uma tarefa permanente de todos aqueles e aquelas comprometidos com a construção de um projeto popular para o nosso país.

Se é verdade que o capitalismo – e outros modos de produção – tem regras gerais e universais de funcionamento, estas, por sua vez, não se desenvolvem da mesma maneira em todos os lugares. Em outras palavras, elas se particularizam em cada realidade, a partir das circunstâncias históricas. Por isso, propomos como chave de análise o estudo da formação social enquanto referência a uma totalidade social concreta e historicamente determinada que combina diferentes relações sociais de produção e reprodução.

“Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de onde vens” (Provérbio africano)

É antigo o preconceito contra outros povos e outras culturas. Podemos ter como exemplo a Roma Antiga, em que eram tratados como bárbaros todos os povos além das fronteiras do seu Império, fossem estes brancos ou não-brancos.

Diante disso, cabe a pergunta: qual a especificidade do racismo? A qual racismo nos referimos? O racismo e a escravidão não são categorias universais – o que significa dizer que em determinados contextos históricos e temporais eles adquiriram características específicas, não podendo, assim, serem explicadas de maneira genérica. O racismo e a escravidão são, portanto, historicamente determinados. Mesmo o conceito de raça, cujo significado já teve uma fundamentação supostamente científica, ancorada nas ciências naturais, é, na atualidade, majoritariamente identificado como um conceito eminentemente histórico e político.

O racismo, tal qual o conhecemos hoje, tem suas origens na modernidade, ou seja, a partir do século XV, embora só se consolide no século XIX. Neste longo período de maturação, marcado por transformações políticas, sociais e econômicas profundas, surge a ideia de hierarquização, de categorização de seres humanos baseada em critérios biológicos e/ou étnicos. O racismo moderno foi um mecanismo que se desenvolveu lado a lado da expansão do capitalismo no mundo.

A transição do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista na Europa e a consequente expansão econômica mercantilista desdobram processos paradoxais, mas complementares e que se alimentam mutuamente: a implantação do trabalho assalariado na Europa e as distintas formas de trabalho escravizado no “Novo Mundo”. Segundo Octavio Ianni, no livro Escravidão e Racismo (1978), “tratava-se de dois processos contemporâneos, desenvolvendo-se no âmbito do processo mais amplo e principal de reprodução do capital comercial”.

Esse processo vai corresponder ao que Karl Marx caracteriza como acumulação primitiva de capital, que consistiria num método de espoliação dos povos a partir da violência, com intuito acumulativo. Foi implementado pelas potências europeias a partir do século XV, com os saques das Índias orientais, a exploração do ouro e da prata nas Américas e a comercialização de escravos na África, além da expropriação forçada dos produtores diretos (camponeses, artesãos, etc) dos meios de produção. Nessa perspectiva, capitalismo e escravidão não se excluem, pelo contrário, o último não é uma anomalia ou uma aberração com relação ao primeiro, ambos são partes constitutivas do mesmo processo histórico. Sem a tríade escravidão/colonização das Américas e da África/colonizadores, a hegemonia do modo de produção capitalista tardaria, se daria de outra forma distinta da que conhecemos.

Essas transformações na esfera econômica vieram acompanhadas de uma ideologia, ainda hoje presente, com outros contornos, justificadora da opressão e exploração: a ideologia colonialista. No século XIX, esteve apoiada no racismo científico.

Um importante autor marxista brasileiro, Nelson Werneck Sodré, no livro A Ideologia do Colonialismo (1961), descreve a ideologia colonialista como mecanismo de atração e preparação subjetiva das classes dominantes das nações colonizadas, para que aceitassem a subalternidade econômica, atribuindo-a à fatores não econômicos, tais como raça, clima ou geografia, aspectos da auto-proclamada superioridade europeia, o que significaria sua predestinação para a condição de dominância global.

Silvio Almeida, no livro Racismo Estrutural (2018), dialoga com essas reflexões quando aponta que o aparecimento do conceito raça acontece no contexto de forjamento da modernidade. Tem, em si, fundamentalmente, a capacidade de articular elementos aparentemente contraditórios: a universidade da razão, do humanismo, produzida pelo iluminismo e a barbárie do colonialismo e da escravidão. Em concordância com esse autor, a raça surge como uma tecnologia que serviu à destruição dos povos das áreas por todo mundo submetidas à brutalidade colonialista europeia.

Com esta breve contextualização, o que se pretendeu demonstrar é que o racismo moderno foi um mecanismo de consolidação do capitalismo a nível mundial.

Mas o que isso tudo tem a ver com o Brasil?

A colonização brasileira é parte desse processo mundial, de acumulação primitiva de capital que conforma o capitalismo europeu. Com a chegada dos colonizadores, o Brasil se vinculou, já em condição subordinada, à economia mundial.

Embora o nosso país estivesse associado ao capitalismo a nível internacional, compartilhamos da interpretação de Jacob Gorender. Segundo esta, no período colonial manifestou-se aqui um modo de produção específico, o qual denominou de Escravismo Colonial. Na interpretação de Gorender, a invasão portuguesa no Brasil, em 1500, colocou em choque duas formações sociais distintas: a dos colonizadores europeus e a dos povos indígenas originários. Tal confronto não se resolveu com a prevalência da formação social portuguesa, nem daquelas que predominavam no Brasil. Tampouco se gerou uma síntese mediada dessas duas formações. O resultado desse processo é um modo de produção historicamente novo, gestado, no primeiro momento, por meio da violência e do genocídio dos povos indígenas originários e, em seguida, com a escravização dos negros africanos. Esse modo de produção se baseou, portanto, na exploração da força de trabalho negra escravizada, na exportação de bens primários, única e exclusivamente a Portugal, e na organização da produção via latifúndio monocultor.

Correspondeu a essa formação social particular, com aquelas características principais, um processo próprio de formação do povo brasileiro, cujas marcas da violência, da desumanização de uma parcela bastante significativa da população residente no território brasileiro no período e da miscigenação, foram decisivas. Assim como a resistência que atravessou todos esses processos.

Considerando que a miscigenação no Brasil nunca foi combatida, embora este processo se estabeleceu em muitos momentos de maneira violenta e compulsória, especialmente em relação às mulheres indígenas e negras escravizadas, o racismo no Brasil não se estruturou com base em um regime de segregação racial legalmente constituído, nem se baseou na origem étnica.

Lélia Gonzalez (1988) caracteriza essas diferentes manifestações do racismo como táticas diversas, visando, contudo, o mesmo objetivo: exploração/opressão. Segundo ela, nos países de origem anglo-saxônica, germânica ou holandesa, negra é a pessoa que tenha tido antepassados negros (“sangue negro nas veias”). De acordo com essa articulação ideológica, miscigenação é algo impensável (embora o estupro e a violência sexual era amplamente praticado). Nessas sociedades, predominou o racismo aberto, de tipo segregacionista, como o apartheid na África do Sul e as leis segregacionistas nos Estados Unidos.

O racismo à brasileira, e dos países de origem latina, se estruturou a partir da sua negação, fundado no mito da democracia racial, a partir de características fenotípicas e de um certo culto à mestiçagem como uma estratégia de embranquecimento. Nas palavras de Gonzalez (idem), um racismo disfarçado ou um racismo por denegação.

Nessa linha, outro importante pensador marxista brasileiro, Clóvis Moura, no livro Dialética Radical do Negro Brasileiro (1994, p. 184), as classes dominantes no Brasil transformaram um fator biológico (miscigenação/mestiçagem) em um fator sócio-político (democracia racial). Ainda, segundo o autor, a mestiçagem não é necessariamente um problema, a questão é como foi ordenada socialmente essa população poliétnica e quais os mecanismos específicos de resistência à mobilidade social vertical massiva.

Com isso, o autor faz um deslocamento importante sobre o tema e, assim como colocamos no início do texto, apresenta a questão racial como uma questão social e política. Logo, o foco não é exaltar ou negar a miscigenação no Brasil, mas analisar os mecanismos concretos que fazem da questão racial um aparato de produção e reprodução de desigualdades sociais.

É importante ressaltar que o projeto de colonização não se instalou em nosso país sem oposição. Rejeitamos a ideia da passividade do povo brasileiro ante a violência da colonização e da escravidão. E os autores que temos dialogado até aqui fundamentam essa afirmação, assim como muitos outros. Desde a chegada dos portugueses e em seu longo período de instalação no território brasileiro, muitos foram os conflitos e as formas de luta e resistência que assumiram as classes subjugadas.

O movimento abolicionista é um belo exemplo e pode ser analisado como o primeiro movimento popular de caráter nacional, de massas. que envolveu setores médios urbanos e negros escravizados. Para tanto, combinou diversas táticas de luta para alcançar seu objetivo estratégico de abolição da escravidão: ações judiciais, agitação, propaganda, relações internacionais, parlamento, campanha de libertação de territórios e organização de fugas orientadas das senzalas no momento de polarização. Este processo culminou com a abolição sem indenização aos latifundiários, como pretendida pelos mesmos, representando uma expropriação em massa da mercadoria mais valiosa nesse período – o escravo.

No livro Flores, Votos e Balas (2015), Angela Alonso apontou que o teatro, o jornal, as festas, as passeatas, as quermesses, as procissões cívicas, as caravanas, as arrecadações de recursos e os lobbies parlamentares foram centrais para construção da força social que teve o movimento abolicionista.

O saldo político da utilização dessas táticas foi alcançar as grandes massas urbanas, rurais, classe média, pequenos artesãos e comerciantes, o nascente operariado, profissionais liberais, as burocracias estatais (demonstrando sua composição popular) e militares, essa última, responsável por enfraquecer o poder repressivo do Estado. Segundo Jacob Gorender, não podemos afirmar que o movimento abolicionista foi um “negócio de brancos”, tampouco surgiu para retirar os escravizados do centro da luta.

O movimento histórico que culminou na abolição da escravatura no Brasil, composto de múltiplos fatores e interesses, é marcado pela formação do Estado burguês. Nessa perspectiva, o fim oficial da escravidão (1888) juntamente com a proclamação da República (1889) e a Constituição (1891) são os fatores estruturantes da formação do Estado burguês no Brasil, parte fundamental da transição da formação social escravista para o capitalismo no final do século XIX e início do século XX.

A Revolução Burguesa no Brasil, processo pelo qual a burguesia se consolida enquanto classe e molda suas estruturas de dominação, desenvolveu-se sem ruptura com a base da dominação no período colonial, como a manutenção do latifúndio. As mudanças operadas não superaram a dependência em relação aos países centrais, mas a renovou, inaugurando um capitalismo de tipo dependente no Brasil: do ponto de vista externo, subordinado ao imperialismo, e do interno, apoiado em profundas desigualdades sociais. Esta caracterização trará consequências para a estruturação do racismo no Brasil.

A substituição da força de trabalho escravizada por formas pré-capitalistas e pelo trabalho assalariado sucedeu, segundo Florestan Fernandes, no livro O Significado Protesto Negro (1989), como a última espoliação para os negros recém libertos. O sucessor do escravizado não foi o trabalhador negro livre, mas o trabalhador branco livre estrangeiro. Isso significa que os negros adentraram à ordem social competitiva em condições desiguais em relação aos brancos. Essa característica não está presente somente no período da transição do escravismo para o capitalismo, mas vai se converter em um elemento estrutural do capitalismo brasileiro. Nesse sentido, o racismo contribui para a regulação do valor da força de trabalho no Brasil, à medida que naturaliza uma condição de superexploração de uma parte da classe trabalhadora, de maioria negra, cuja destinação é o trabalho sujo e mal pago, sem direitos e abaixo do mínimo necessário para a reprodução da sua existência, nas palavras de Florestan. E, por outro lado, esse grande número de trabalhadores na informalidade mantém um exército industrial de reserva que pressiona pela não valorização da força de trabalho e induz ao rebaixamento dos salários da classe trabalhadora inserida no mercado formal.

Uma outra dimensão do racismo estrutural é a questão da violência e do encarceramento em massa como formas de controle social, especialmente da população negra. A sua funcionalidade também se relaciona com a gestão, por parte da classe dominante, da contradição capital-trabalho. A manutenção da grande maioria da classe trabalhadora na informalidade e no trabalho precarizado é uma ameaça permanente à dominação burguesa, pois essa contradição é capaz de gerar crises e convulsões sociais. A gestão perversa e cruel dessa contradição é, por um lado, a manutenção de uma parcela da classe trabalhadora em formas de trabalho precarizados e, por outro, o seu encarceramento ou descarte, pela violência do Estado.

Na história do Brasil, a utilização de um estereótipo racial para a construção de suspeitos, baseado na ideia de “classes perigosas”, é uma constante; foi construída no pós-abolição, mas reflete ainda hoje na estrutura seletiva do sistema de justiça criminal. A seletividade do sistema penal se concretiza ancorada num ideal punitivista visivelmente direcionada para determinados segmentos sociais, sobretudo à juventude negra periférica, e se dedica ao encarceramento em massa como forma prioritária de controle social punitivo. O ódio das classes dominantes ao negro e a tudo que é associado a negritude tem uma relação direta com a gestão e manutenção da sua dominação.

Por fim, o racismo também se estrutura na construção de uma identidade nacional excludente, que oculta ou invisibiliza a contribuição negra na formação da identidade nacional, mas aparentemente universalista, fundada no mito da democracia racial e no ideal de branqueamento.

O padrão de submissão ao imperialismo, a partir do capitalismo dependente, o caráter anti-popular, anti-democrático da burguesia, tem desdobramentos dramáticos na questão racial. Todas essas características interditam a viabilidade de uma possível democracia racial ou mesmo uma democracia plena.

Para Florestan Fernandes (idem), o negro ou a questão racial é a pedra de toque da revolução democrática na sociedade brasileira, tanto no sentido de denunciar os resquícios do modo de produção anterior – o escravismo colonial – quanto das formas renovadas que o racismo atinge com a emergência do modo de produção capitalista.

Ainda, segundo o autor, o capitalismo monopolista da periferia não contém dinamismo para fundir raça e classe. Um movimento nessa direção fica dependendo de alterações ou revoluções proletárias e socialistas. E conclui: “A raça se configura como pólvora do paiol, o fator que em um contexto de confrontação poderá levar muito mais longe o radicalismo inerente à classe. Como escrevi no prefácio do livro citado, é a raça que definirá o padrão de democracia, em extensão e profundidade, que corresponderá às exigências da situação brasileira. Hoje, aliás, é patente que a reflexão vale tanto para uma democracia burguesa, quanto para uma democracia popular e proletária – ou seja, do capitalismo ao socialismo” (FERNANDES, 2017, pág. 63).

É por isso que concordamos com o autor quando aponta como desafio das forças populares a construção de uma estratégia de luta política corajosa, cuja centralidade é a negação do mito da democracia racial e a fusão de raça e classe como reguladores da eclosão do povo na história.

Diante desses elementos e da história da luta de classes no Brasil, o racismo e a questão racial não podem ser considerados apenas como expressões ou manifestações identitárias. O racismo está na essência da produção e reprodução das relações sociais desiguais da sociedade brasileira. O racismo estrutural foi (e continua a ser) elemento constitutivo e constituinte do projeto de nação das classes dominantes para o Brasil e, portanto, particularizou a formação das classes sociais e as formas de exploração e opressão do trabalho pelo capital no país.

Em tempos de fascistização da sociedade, esse debate se torna ainda mais urgente pelos vínculos, demonstrados até aqui, entre a ideologia racista, o capitalismo, o colonialismo e o imperialismo.

O Dia da Consciência Negra é um dia de tomada de consciência do que foi e do que é o Brasil, do que somos enquanto povo brasileiro e das tarefas nacionais, democráticas e populares, sem as quais não podemos falar seriamente em emancipação.

“Oprimidos do Brasil uni-vos. Uma nova sociedade os espera, se vocês souberem construí-la!
(Florestan Fernandes)

*Iyalê Tahyrine é historiadora, militante da Consulta Popular e integrante do Brasil de Fato PE.
 
**Jarbas Vieira é administrador, militante da Consulta Popular e do Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM).
 
***Thays Carvalho é advogada, integrante da Coordenação Político-Pedagógica da Escola Nacional Paulo Freire, militante da Consulta Popular e do Levante Popular da Juventude.