Falta de acesso à água é mais um obstáculo para que famílias atingidas pelo rompimento da barragem em Mariana, retomem seus modos de vida
Há quase 30 anos, a Organização das Nações Unidas definiu 22 de março como o Dia Mundial da Água. Uma data para refletir sobre a preservação desse bem da natureza essencial para toda vida no planeta. Em 2019, a Comissão de Atingidos pela Barragem de Fundão de Mariana (CABF) publicou uma nota em defesa da água e contra a negligência das indústrias de mineração e do agronegócio. “Quando morre um rio, se acaba junto com ele um mundo de formas de vida: morre peixe, planta, bicho, morre o bicho gente. Nós, humanos, costumamos nos achar diferentes dos demais seres, mas somos parte da natureza. Sem água não existimos nesse mundo!”. Hoje, Dia Mundial da Água, a Cáritas Regional Minas Gerais faz coro à luta pelo direito à água, intimamente ligado ao direito à vida, que, para as famílias atingidas pela barragem de Fundão, vem sendo violado desde 2015.
Os 43,8 milhões de metros cúbicos de rejeito tóxico despejados no rio Doce, uma das principais bacias hidrográficas de Minas Gerais, representam adoecimento e morte para as plantas, animais e pessoas às margens dessas águas que, antes do crime, eram fonte de vida. As mineradoras Samarco, Vale e BHP, por meio da Fundação Renova, são responsáveis por reparar o direito à água das pessoas atingidas. São centenas de atingidas e atingidos pelo rompimento da Barragem do Fundão que encontram-se em uma realidade de vulnerabilidades e incertezas sobre o fornecimento de água bruta nas suas comunidades. A questão é motivo de repúdio por parte das famílias neste 22 de março. A restituição de água bruta nas áreas atingidas faz parte do acordo de reparação, mas as pessoas seguem sem respostas 5 anos após o crime.
Estudos mostram que nas águas do rio Gualaxo do Norte, afluente do rio Doce, há contaminação por diversos metais pesados, como arsênio, chumbo, mercúrio e níquel (LEA-AUEPAS/UFOP, 2019), além de ferro e manganês (LEA-AUEPAS/UFOP, 2019; AMBIOS, 2019). Portanto, é fundamental destacar que as águas deste rio, que banham a área rural de Mariana, não são próprias para consumo humano, nem mesmo para pesca, irrigação de plantas ou consumo animal.
Enquanto na zona rural as famílias atingidas já sentem na pele a falta de água de qualidade para manter criações e plantações, nos reassentamentos não há qualquer previsão de fornecimento de água bruta. Em artigo publicado no jornal Brasil de Fato, as integrantes da CABF, Mirella Lino, Cláudia de Fátima Alves e Luzia Queiroz trazem um relato dessa dura realidade: “Nas nossas comunidades, estávamos cercadas de verde da Mata Atlântica, de ar puro e fresco. Por lá passa o rio Gualaxo do Norte, que era usado para manter as plantações ou mesmo como fonte de alimentação, pela abundância de peixes. Hoje o rio tem rejeito tóxico e quem ainda está perto dele sente tristeza pelo que virou. A gente vê também que nos reassentamentos coletivos não vai ter água para os animais e para as plantas, o que nos deixa ainda mais inseguras sobre como vai ser nossa vida no futuro”.
Senhor Raimundo Alves plantava de tudo em Bento Rodrigues e depois do rompimento da barragem de Fundão passou a contribuir com horta comunitária em Mariana
Esse cenário evidencia o descaso da Renova com os modos de vida das pessoas atingidas. “Paracatu vai ser uma cidade praticamente morta, pois sem a água como vamos plantar, cuidar das nossas criações?”, questiona Jerônimo Batista. O atingido é membro da Comissão de Fiscalização do Reassentamento de Paracatu de Baixo e relata que, desde o início, a Renova garantiu que água não seria problema, mas que, ainda hoje, não apresentou solução para a disponibilidade de água bruta para a comunidade. “Sem ela é quase impossível manter minhas criações no reassentamento, por isso a gente está lutando: para conseguir ter essa água bruta no novo Paracatu”. O atingido indigna-se ao abordar o assunto e avalia a atuação da Renova como péssima. “Não estão preservando o nosso direito e não estão cumprindo com suas palavras”, conclui.
As pessoas atingidas têm cobrado soluções para a disponibilidade de água bruta para as comunidades de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo, Paracatu de Cima, Borba, Campinas, Camargos, Pedras e Ponte do Gama, no âmbito da reparação do direito à moradia – reassentamentos coletivos, familiares e reconstrução. A resposta oferecida pela Renova foi que “o pagamento da compensação financeira pela alegada perda de acesso a fontes de captação de água pelos atingidos […] está em discussão no âmbito judicial e as manifestações e discussões sobre o tema se darão nos autos”. Ou seja, a Renova aguarda decisão judicial sobre compensação financeira pela perda de acesso à água bruta por parte dos atingidos, dando a entender que não pretende restituir o direito à água para retomada dos modos de vida das pessoas.
Não satisfeita, a CABF enviou um ofício, em 03 de dezembro de 2020, solicitando informações sobre “meio de estudos/laudos de cada comunidade atingida, incluindo as propostas de fonte, forma de captação, distribuição e manutenção do sistema, ou seja, um detalhamento a respeito das possibilidades de garantia de acesso à água bruta em quantidade e qualidade, bem como propostas de implementação”. Ainda assim, a Fundação Renova manteve a resposta e deixou claro que pretende apenas garantir o acesso à água potável para as casas das famílias, ignorando completamente a necessidade de água bruta para a retomada dos modos de vida das pessoas atingidas.
No entanto, a situação do acesso à água na zona rural é ainda mais urgente, além da falta de água bruta em qualidade adequada, falta até mesmo água potável e segura para algumas famílias. Muitas comunidades ainda são abastecidas pelo caminhão-pipa. Em Ponte do Gama, por exemplo, há um poço artesiano feito em área contaminada com rejeito e sem análise da qualidade da água. Maria da Conceição Santos de Paula diz que a solução para a comunidade seria o poço artesiano com água segura. “A avaliação que eu faço sobre a reparação do direito à água por parte da Renova é que está péssimo pra nós, ainda não resolveu nada sobre o poço. É pra fazer a instalação da água e ainda não foi feito e não estão nem falando disso mais”, relata a atingida que ainda destaca a insegurança do fornecimento de água via caminhão pipa. “A situação do acesso à minha comunidade está péssima. Passando por Paracatu houve uma erosão na estrada e não suporta mais caminhão pesado e, passando pela outra estrada que dá acesso à Ponte do Gama, a estrada está péssima, se continuar chovendo nos próximos dias a gente vai ficar sem água por falta de acesso à comunidade”, diz.
Em Camargos, existem estudos sobre a viabilidade do fornecimento de água potável feitos pela Renova, mas apesar da promessa da Fundação de garantir uma infraestrutura adequada para o abastecimento, as famílias enfrentam diversos problemas com encanamentos cuja manutenção é realizada de forma improvisada pela própria comunidade. A Renova informou que faria captação em nascentes e perfuração de poços, mas essas obras nunca foram executadas. Quando cobrada, a Fundação novamente disse à comunidade que está aguardando decisão judicial sobre compensação financeira, dando a entender que não fará as obras.
Há mais de cinco anos o crime se renova nas vidas das famílias atingidas, que vivem sucessivas violações de direitos humanos e universais. Nesse Dia Mundial da Água, as pessoas atingidas pelo rompimento da barragem da Samarco, Vale e BHP exigem justiça, por água em quantidade e qualidade suficientes para a retomada dos seus modos de vida.
Por Ellen Barros, comunicadora da Cáritas Regional Minas Gerais em Mariana
Fotos: Tainara Torres, Jornal A Sirene
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