Subdesenvolvimento da população, impactos ambientais, dependência no mercado internacional e alta lucratividade das mineradoras são algumas das consequências da Lei Kandir
Por Ananda Ridart, da página do MAM
A existência da Lei Kandir, que isenta o pagamento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre as exportações de produtos primários, como itens agrícolas, minerais, produtos semielaborados ou serviços, é sustentada sob a argumentação de garantir uma maior competitividade dos produtos brasileiros no mercado internacional. Contudo, a desoneração do tributo – quando o governo desonera algo ou alguém, está livrando esta pessoa de um determinado encargo ou tributo – impede o arrecadamento de bilhões no orçamento dos estados que possuem exploração mineral.
Formulada pelo ministro do Planejamento Antônio Kandir no então governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a Lei deu continuidade ao Programa Nacional de Desestatização (PND) através de um pacote de políticas de privatização dos setores primários da economia nacional, como a indústria siderúrgica e empresas como a Vale, privatizada a 27 anos.
A privatização da mineradora acabou com iniciativas de agregação de valor antes da exportação de produtos minerais. À época, movimentos sociais denunciaram o modelo de exportação que não gerava emprego, industrialização e beneficiamento. “Esse conjunto de políticas, somado à Lei Kandir, desencadeou um processo de desindustrialização do país. Foi o desmonte da produção brasileira, já que renunciamos à nossa industrialização para exportar o que estava sendo comprado no mundo”, reflete Cláudio Scliar, geólogo e ex-secretário de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do Ministério de Minas e Energia.
Para Scliar, através de um modelo de desenvolvimento econômico inspirado nas concepções do programa “Exportar é o que importa”, de Delfim Netto, ex-ministro da economia durante a ditadura militar, o Brasil tornou-se condicionado à demanda internacional e isso desestimulou a indústria nacional que poderia crescer, caso a matéria bruta mineral ou agrícola fosse aproveitada e agregada valor em solo nacional.
No exemplo da exploração de minérios, a Lei Kandir incentiva a exploração e exportação de minérios em estado bruto, atendendo à uma demanda enorme do mercado internacional. Logo, as empresas mineradoras, em busca da maximização dos lucros, tendem a explorar o máximo de minérios em um menor tempo possível, muitas vezes precarizando o ambiente de trabalho.
Nessa prática, há um custo ambiental muito grande e pouco impacto no desenvolvimento social e econômico. A demanda internacional é infinita, mas o minério não. Hoje há uma exploração predatória dos recursos minerais no país sem a garantia do bem-estar social.
O engenheiro de produção e professor da Universidade Federal de Juiz (UFJF), Bruno Milanez, acredita que a aplicação da Lei Kandir traz uma estagnação à indústria nacional, mas a transformação em produtos acabados e beneficiados do minério, através de uma política desenvolvimentista, não é a solução.
“O modelo atual é de uma exploração intensa da atividade mineral para gerar uma quantidade bem pequena de riqueza para o país. Temos que inverter a equação, não é atender à necessidade do mundo e sim às nossas necessidades. Não adianta extrair todo o minério e transformar em aço, a ideia é gerar mais riqueza com menos minério e diminuir a quantidade de extração”, explica o engenheiro.
Perda econômica
São vários os problemas e conflitos econômicos e sociais que orbitam esses 25 anos de aplicação da Lei Kandir. Para além do desestímulo do potencial de riqueza que poderia ser gerado no país, há principalmente o impacto da falta de tributação nas receitas dos estados que sofrem com a atuação da exploração em seu território.
No estado do Pará, por exemplo, 13,5% do Produto Interno Bruto (PIB) vem de atividades minerais, mas em termos de receita isso é muito pouco. Há uma exportação em torno de 100 bilhões de minérios por ano no estado e, devido a esse tratamento tributário privilegiado, nota-se que não há uma contribuição para o desenvolvimento estadual, pois mesmo sendo a maior potência mineral do país, 46% da população paraense vive abaixo da linha da pobreza.
Apenas no primeiro semestre deste ano, a Vale arrecadou, em lucro líquido, em torno de R$ 69 bilhões, o que representa mais que o dobro do orçamento paraense para o ano todo, em torno de R$ 31 bilhões.
Charles Alcântara, auditor fiscal de receitas do Estado do Pará e presidente da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco), acredita que esse tratamento tributário é inaceitável e anda na contramão das experiências em outras nações que utilizam a extração de matéria prima como principal fonte para o desenvolvimento social e a garantia do bem-estar.
“Nós não extraímos quase nada da nossa principal atividade econômica, sem contar a degradação, os impactos ambientais gravíssimos, o aumento da violência em torno das cidades mineradas, problemas de explosão demográfica, aumento da pobreza, desigualdade e as sequelas de tudo isso, como a violência social”, afirma Charles.
Tentativa de compensação
Após ação e pressão dos governadores, o Supremo Tribunal Federal (STF) garantiu, no ano passado, um acordo financeiro entre o governo federal e os estados para a compensação das perdas de arrecadação provocadas pela Lei Kandir. É previsto o repasse de 65 bilhões para os estados e o Distrito Federal, 58 bilhões devem ser repassados até 2037 e os estados deverão desistir das ações judiciais contra a União.
O acordo foi uma forma de minimizar um conflito fiscal. Para Charles, esse repasse tem um valor minoritário perto do que deveria ter sido arrecadado durante esses 25 anos e os estados continuarão perdendo bilhões até 2037.
Bruno Milanez observa que a compensação não atinge o cerne da questão, que é a falta de geração de riqueza, e essa compensação financeira não é retirada dos lucros da mineração, mas de impostos provenientes de outras áreas. “É tapar o sol com a peneira. Não vai no problema. É para acalmar os ânimos dos governadores, uma forma subalterna de inserção global desistindo de gerar riqueza no país”, esclarece.
Há uma pressão de movimentos sociais, economistas e políticos para a revogação da Lei Kandir, mas há também uma resistência do setor mineral e do agronegócio, que tem garantido a vigência da lei nos últimos 25 anos. O argumento mais utilizado é a possível perda de competição dos produtos brasileiros no mercado de outros países.
“Nós somos os donos da riqueza mineral. A nação é a dona. As empresas possuem permissão e licença para explorar e ganham muito mais do que os donos da riqueza. Isso é inaceitável. Não ficamos com nada, além da degradação. Não temos a oportunidade de extrair dessa mineração recursos, até para se pensar em alternativas para criar um modelo de desenvolvimento, investir em ciência e inovação de tal modo que não fiquemos na dependência mineral”, finaliza Charles.
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