Fortes chuvas causaram tragédias em MG, agravadas pela intensa atividade minerária na região durante séculos
*Texto por Ananda Ridart, da página do MAM
As chuvas intensas são comuns no estado de Minas Gerais durante os meses de novembro a março. A grande quantidade de água que vimos neste início de 2022 e as crescentes mudanças climáticas são fatores importantes para levar em consideração as tragédias que vêm acontecendo no estado: nos últimos dias as enchentes causaram a morte de 25 pessoas, mais de 35 mil pessoas ficaram desalojadas, segundo a Coordenadoria Estadual de Defesa Civil (Cedec), além de 375 cidades que entraram em estado de emergência.
Mas pouco se fala da influência da intensa atividade mineradora na região e o descaso dessas empresas como fatores agravantes para a ocorrência dessas enchentes. A época de chuvas tem marcado o estado com tragédias e crimes ambientais ocasionados pelas mineradoras há anos – foi durante esse período que crimes como Mariana e Brumadinho aconteceram, por exemplo. Atualmente, há 31 barragens em estado de emergência no estado, sendo três delas classificadas no nível máximo de emergência com risco iminente de rompimento.
As cidades mais impactadas estão localizadas no quadrilátero ferrífero, região do estado de Minas Gerais descoberta no século 17, explorada com a extração de minerais desde então. O município de Nova Lima sofreu inundações causadas pelo deslocamento de um pedaço de uma pilha de estéril da empresa Vallourec, no último dia 08 de janeiro, que ao cair no dique ocasionou o transbordamento e interditou parte da BR-040.
Para o engenheiro de produção e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Bruno Milanez, esse deslocamento não deveria ter acontecido porque as pilhas de estéril devem ser calculadas para suportar chuvas intensas. “O que considero importante entender é que essa pilha de rejeitos cedeu e não deveria ter cedido, pois ela é calculada para aguentar uma chuva de ‘X’ anos. Parece ter sido um problema de drenagem que, por algum motivo, o sistema não aguentou e permitiu que o material escorregasse. Não há problemas com o dique, mas devemos nos preocupar com o que levou o desmonte da pilha”, alerta o engenheiro.
Para o engenheiro, o complexo minerário é um castelo de cartas onde as estruturas estão apoiadas umas nas outras. Uma barragem pode estar estável, mas se logo acima houver uma pilha de estéril que não é fiscalizada e controlada por nenhum órgão competente, não há segurança. Se apenas uma estrutura está estável, o complexo é todo comprometido.
“A Agência Nacional de Mineração (ANM) não fiscaliza pilha de estéril e onde tem uma pilha há um dique ou barragem próximo. Ninguém está olhando para o problema. Acusam as chuvas como se justificasse o deslocamento de uma pilha que não deveria ter caído. É uma engenharia, então a empresa deve explicar o porquê de a pilha não ter aguentado. Não dá para naturalizar desastres como esses. Em Nova Lima não houve nenhuma vítima, mas poderia ter tido”, pontua Bruno Milanez.
Sinal de alerta
Ambientalistas já haviam alertado sobre os perigos da estrutura, porém a pilha teve um licenciamento ambiental aprovado de forma expressa para seu ampliamento. Até o momento, a Vallourec não se pronunciou sobre as causas do deslocamento da pilha. A ANM determinou que a região está em nível de risco de rompimento.
Em Macacos, distrito de Nova Lima, a mineração também deixou rastros de destruição. O distrito, que é cercado por duas barragens com risco iminente de rompimento (B3 e B4), possui um muro de contenção construído pela Vale com o intuito de segurar possíveis rejeitos de um rompimento de barragem. O muro tem aproximadamente 40 metros de altura, o tamanho de um prédio de 10 andares, e tem o objetivo de impedir que uma lama de rejeitos possa chegar ao Rio das Velhas, que abastece a região metropolitana de Belo Horizonte.
Caso uma lama de rejeitos caia no rio, se instalaria uma crise hídrica na região. Com o aumento das chuvas durante o mês, o nível da água aumentou e com a represa do muro, o escoamento desceu para o distrito de Macacos, deixando a população desabrigada.
De acordo com moradores, a Vale disponibilizou um número telefônico para contato, mas ninguém consegue falar com a empresa para saber informações sobre as barragens e as enchentes. A única comunicação se dá por notas oficiais em um grupo de WhatsApp onde a empresa afirma que as barragens estão seguras.
A ecóloga e moradora de Macacos, Marília Oliveira, comenta que a quantidade de chuva não foi fora do comum para essa época do ano e não há motivos para inundação da cidade além do transbordamento do muro.
“Vemos com os nossos olhos que o vertedouro* do muro não deu conta de drenar toda água e essa água retornou para a comunidade, mas não tivemos nenhuma resposta da Vale. Para ter uma ideia, mesmo com a altura do muro, tudo ficou cheio e com a dificuldade de drenar, começou a vazar pelo ladrão na parte alta. Essa água teve um refluxo por cinco córregos que deságuam, inundando todos os caminhos de acesso, inclusive a rota de fuga. Caso a barragem rompa, essa é a única rota de fuga que temos, então os moradores ficaram ilhados mais de uma semana”, expõe a ecóloga.
*Vertedouro: estrutura hidráulica que pode ser utilizada para diferentes finalidades, como mediação de vazão e controle de vazão.
A luta dos moradores do distrito fez com que a Vale conseguisse liberar um acesso de saída por dentro de um condomínio fechado. Entretanto, a estrada feita de terra fez com que as pessoas ficassem atoladas e não conseguissem deixar a cidade. Para a ecóloga, as negligências do poder público ferem direitos humanos básicos: a população está sem acesso à água, mantimentos e até mesmo à saúde, sendo obrigados a aglomerar em meio a uma pandemia.
“Porque ninguém está falando do papel das mineradoras nisso? O desastre não é um evento só da lama correndo. O desastre é um processo e está instalado desde 2019 quando as barragens tornaram-se perigosas. As pessoas estão passando por esse processo de terror e sofrimento constante. Macacos é sitiado, você vê placa de fuga em todos os lugares, todo mês é tocado uma música clássica como uma marcha fúnebre para saber se as pessoas estão ouvindo, é uma simulação do terror que está chegando. É um terrorismo viver dessa forma, com esse medo todo, e curiosamente nessas enchentes, a água que desceu da represa fez todo o percurso da mancha de lama. Parece um prenúncio, é uma morte em vida da dignidade das pessoas”, afirma categoricamente Marília.
Seguindo o curso do Rio das Velhas está a cidade de Rio Acima, que sofreu com a cheia do rio. Para Mateus Salgado, comerciante e morador do local, o dia 08 de janeiro ficará marcado na história do município como a maior enchente desde 1997. Para a população, tem sido dias de horror. “Nos anos 1990, a água subiu cerca de um metro de altura na casa onde moramos, este ano subiu acima do nível da porta. Tem sido dias muito difíceis, a gente não consegue limpar, não tivemos nenhum óbito, mas assistimos os vizinhos sendo resgatados de barco. A prefeitura foi atingida e estamos em estado de calamidade pública”, lamenta Mateus.
A população afirma que há indícios de crime ambiental, pois a enchente levou uma lama pesada colorida e com cheiro de óleo, e há suspeita de estar contaminada com rejeitos de minérios. A densidade da lama parece tão grande que há relatos de que dois caminhões-pipa não conseguiram fazer a limpeza de uma academia.
“Perdemos tudo na lama, nossa história, nossas casas e nosso sustento. A mesma lama que desalojou 10 mil pessoas das 17 mil pessoas de Raposos fez estragos antes aqui, chegou a causar muita erosão. Nenhum morador viu isso em nenhuma enchente ou cheia. É no mínimo estranho ou questionável”, conta o comerciante.
Mais de 300 anos de conivência
Onde há mineração, há enchente no estado de Minas Gerais. Onde não há mineração propriamente dita, há o trem levando poeira mineral para todos os cantos do estado. Minas Gerais tem mais de 400 barragens entre diques, hidroelétricas e rejeitos. Isso traz um processo de medo e pânico e, ao mesmo tempo, um sentimento de impunidade que virou cotidiano. A engenheira de segurança do trabalho Marta de Freitas, atuante no setor da mineração, comenta que não tem como contar com as mineradoras e nem com a autofiscalização delas.
“Existe uma coisa séria aqui no estado, não dá para acreditar nos órgãos competentes e no poder público. Não dá para acreditar nas mineradoras, porque elas não se preocupam em garantir segurança. Quando começa o período de chuvas a população entra em pânico. No município de Congonhas temos barragens construídas depois que os bairros já estavam lá e hoje temos uma cidade construída debaixo de uma barragem. Fundão e Brumadinho estavam seguras até o momento do rompimento, então essa questão de autodeclaração é um perigo. No caso do dique de Pau Branco, em Nova Lima, foi autorizado pelo governador de MG para o loteamento da pilha de estéril e foi exatamente essa pilha que fez transbordar, ou seja, todos são coniventes”, relata.
As enchentes e os desabamentos, como o deslizamento de terra que destruiu casarões antigos em Ouro Preto são resultados de mais de 300 anos de exploração mineral no estado. É a reprodução de um modelo predatório com um ciclo de dependência econômica que sacrifica a população mineira.
A falta de políticas de fiscalização e o recente licenciamento ambiental, que tem acelerado e facilitado indiscriminadamente projetos de mineradoras no estado, têm criado condições que possibilitam crimes ambientais, condições de trabalho insalubres e risco de vida para a população local. “Sempre falo que Fundão não foi a primeira e Brumadinho não será a última, se isso não mudar”, finaliza Marta Freitas.
Comentários