Texto de Ananda Ridart, da página do MAM
As chuvas do início do ano castigaram muitos municípios em Minas Gerais, e a cidade de Brumadinho, que não via uma enchente dessa proporção desde 2012, foi uma das mais impactadas do estado. Essa é a primeira enchente após três anos do rompimento da barragem B1 na mina Córrego do Feijão, crime que matou mais de 270 pessoas e é considerado o maior acidente de trabalho da história do Brasil.
Ao longo desses três anos muitos foram os desdobramentos das consequências do rompimento e a continuidade do crime no dia a dia da população, como a recente enchente neste 2022 que veio cheia de rejeitos de minérios. Localizada às margens do Rio Paraopeba, a cidade sofreu com a subida rápida da água que alcançou 13 metros acima do nível do rio, pegando a população de surpresa e fazendo com que muitas famílias perdessem suas casas e outros bens.
A engenheira Marta Freitas, que já havia atuado no rompimento de outras três barragens onde morreram mineradores, relembra quando veio o crime da Samarco, em Mariana, no ano de 2015, quando atava na Secretaria de Saúde do estado.
“Vários colegas de trabalho diziam que tinham adoecido em Mariana, alguns não voltaram a trabalhar por presenciar o impacto e sofrimento dos outros. Costumava dizer que eu era a única que não havia adoecido, mas aí veio Brumadinho. Aquela cena me machucou muito, ver os helicópteros descendo e subindo com aqueles sacos pretos carregando os corpos… Dóí demais, viu? Ali foi um cemitério a céu aberto, não dá para descrever”, relembra Marta, que foi até Brumadinho ajudar o Presidente da Federação dos Trabalhadores nas Indústrias Extrativas do estado.
Além das vidas perdidas, o rompimento da B1 também causou o assoreamento do Rio Paraopeba, matou a vegetação ao redor, causando o aumento do nível das enchentes e os rejeitos de minérios que estavam presentes no fundo do rio se deslocaram com a subida da água.
Após a baixa do nível da água, que afetou em grande maioria os bairros mais pobres localizados à beira do rio, observou-se que a lama ainda escorre pela bacia do Paraopeba. Uma grande quantidade de rejeitos de minério invadiu as casas que acabaram sendo condenadas pela Defesa Civil. As pessoas desalojadas não têm para onde voltar, uma vez que suas casas estão preenchidas com faixas de 50 cm de lama tóxica.
Para Marcelo Barbosa, articulador social da Arquidiocese de Belo Horizonte, a Vale deveria ser responsabilizada pelas consequências da última enchente. Contudo, são consideradas atingidas pelo rompimento da B1 apenas aqueles que residiam em Brumadinho na data do crime, em 25 de janeiro de 2019.
“Acontece que 50% das pessoas afetadas hoje pelas enchentes são aquelas que vieram para a cidade trabalhar nas obras da reparação. São mais ou menos sete mil pessoas contratadas pela mineradora ou terceirizadas que perderam tudo e estão sendo intoxicadas. A prefeitura da cidade enquadrou a Vale atribuindo a ela a responsabilidade da enchente com rejeitos, mas o acordo judicial com o estado blinda a empresa de arcar com tudo isso”, aponta Barbosa.
Lama que ainda escorre pelas veias abertas
A barragem B1 já havia dado sinais de problemas anos antes do rompimento. Há indícios de que, em 2017, a empresa tinha conhecimento de que a estrutura não era mais segura. Em 2018, houve um monitoramento da barragem que constatou que havia água acima da capacidade da estrutura. Em caso de rompimento da barragem, já havia uma estimativa de valores dos danos causados e quantidade de possíveis vítimas.
Três anos depois, a mineradora segue suas atividades com alta lucratividade e totalmente impune. As buscas continuam. Amigos e familiares de 18 pessoas ainda esperam encontrar corpos de seus entes queridos. As comunidades estão com água contaminada com minérios e os agricultores perderam tudo, além do adoecimento mental da população após o crime. Não há reparações, indenizações e compensações que consigam tirar o sofrimento causado pela Vale nos moradores de Brumadinho.
No entanto, nem ao menos a reparação material tem sido feita. O acordo firmado entre a Vale e o Estado de Minas Gerais, em fevereiro de 2021, possui o valor de R$ 37,68 bilhões que serão destinados a programas para a reparação das famílias das vítimas e os impactos socioambientais da bacia do Paraopeba. Contudo, R$ 11,06 bilhões ficaram sob responsabilidade do Governo do Estado. Em nota oficial, movimentos sociais como o MAM denunciam que o valor firmado com a empresa e o governo é abaixo do que foi estipulado pela Fundação João Pinheiro para reparação, que era de R$ 54 bilhões.
Para além da diferença de valores, o acordo foi construído de portas fechadas. Os representantes e familiares atingidos pelo crime não puderam participar das negociações. O processo de reparação por danos e prejuízo coletivo tem a previsão de dez anos para implementação completa de todos os projetos da reparação, contando a partir da data de assinatura, 4 de fevereiro de 2021.
O processo de reparação para danos individuais deveria prescrever hoje, após três anos do acontecido, segundo o Código Civil Brasileiro. Se não for manifestado em juízo ou negociação extrajudicial até essa data, o processo de reparação individual se prescreve e a Vale se desobriga a negociar.
Existem Ações Civis Públicas que solicitam a extensão desse prazo devido a magnitude dos danos causados, mas essas ações ainda não foram respondidas deixando incertezas sobre o futuro da população.
A Vale se comporta como se já tivesse cumprido todas as obrigações de reparos após o acordo com o Governo do Estado, deixando a comunidade à mercê do crime continuado. Há um sentimento de injustiça e as enchentes, aliadas ao estrago provocado por séculos de exploração de minérios nas Minas Gerais, despertaram a lembrança triste de que todos os dias o crime de Brumadinho acontece de novo.
“Apesar dos danos causados pela ampliação dos impactos e pela sensação de impunidade, hoje as pessoas comentam novamente no cotidiano que a responsável pelos danos da enchente é a Vale. Estamos puxando o fôlego novamente na luta pela reparação digna e a condenação dos responsáveis. Não vamos parar”, afirma Barbosa.
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