Por Karina Martins**
Para Página do MST

A primeira bofetada atingiu o ouvido e um zumbido entrou em sua cabeça junto aos gritos.

— Macaca!

— Volta pra senzala!

Ela resistiu em pé, levantando os braços e tentando uma rota de fuga. Os socos, pontapés, empurrões se seguiam, fazendo o turbante colorido se soltar, revelando uma cabeleira organizada em tranças bem feitas. Teve consciência de uma pancada forte no ombro, com algum objeto duro e roliço, e não pode evitar que os joelhos se dobrassem. Algumas mãos agarravam as tranças, outras agarravam seu vestido.

— Só tenho este vestido! — pensou que estava gritando, mas foi só um murmúrio nos lábios sangrentos.

Um chute na barriga a fez dobrar-se, outro no rosto a jogou de costas no asfalto quente. Desnuda, algumas mãos lhe agarraram os seios, rasgando a pele, enquanto outras seguiam socando, acompanhando os pontapés em todo o corpo.

— Iansã, Iansã… — um pensamento longínquo, uma busca por algum lugar de refúgio, um lugar de paz.

Anos mais tarde o rosto ainda tinha várias cicatrizes, o que lhe fazia sentir-se feia e indesejada. As marcas da pele rasgada dos seios eram seu registro de celibato.

O país havia mudado, pouco, mas positivamente. Agora ela tinha cinco vestidos e vários turbantes. Os tecidos africanos estavam na moda, principalmente depois do sucesso do estilista Pathé Quedraogo. Muita gente usava turbante, às vezes em uma estranha combinação com os lenços palestinos que se podia encontrar a baixos preços em qualquer camelô.

A dificuldade em ter boa alimentação na cidade grande, o medo de andar pela rua e outras infelicidades, levaram ela ao Movimento das Sem Terra. Queria viver no campo e trabalhar a terra. Teve medo de ser excluída, como em toda sua vida, por sua cor, por seus cabelos, por suas cicatrizes. Nas primeiras reuniões com militantes do Movimento para preparar a ocupação, ficava calada, lá no fundo, com medo.

Sua primeira ocupação de terras era a quarta de Eulália. Branca como leite, aos 36 anos aparentava 52, pelo menos. Eulália não tinha dentes. Sua boca banguela, suas mãos cheias de manchas e calos, seu rosto enrugado, eram seus registros de celibato.

Chegaram à fazenda às seis da manhã. Escuro. Um grupo tomou a sede e a família que tomava conta do latifúndio se juntou ao acampamento, com vontade de conquistar sua própria terra e deixar de trabalhar para um patrão. Rapidamente uma cidade de lona preta se ergueu, a escola itinerante reuniu as crianças e começaram a ornamentar seu espaço, um grupo com enxadas iniciou uma horta, outro grupo demarcou o campo de futebol e ergueu umas traves improvisadas.

Eulália também estava na cozinha coletiva. Ali as duas se conheceram, cuidando um fogo que bailava na ventania da manhã, compartindo a cuia de mate que afastava o frio, garantindo comida para centenas de companheiras.

— Como é teu nome?

— É… é… é Preta.

— Óia, tu tem nome de gente famosa!! — E Eulália ria sem medo, com as gengivas embranquecidas.

Preta sorriu para si mesma. Manteve a cabeça baixa.

— Eu sô Eulália, mas me chama de Lali. Tens família?

— Não, sô só. — murmurou a outra.

— Eu também. Óia que casulidade. Num tenho assim, família, mais aqui no Movimento é minha família, sabe? É tua primeira ocupação?

E Eulália seguiu falando e perguntando. E Preta foi respondendo, cada vez olhando melhor para Eulália, reparando em suas rugas, em seu cabelo fino e branco, com as pontas abertas, as unhas maltratadas como as suas. Eulália lhe contou sua infância, nascida em uma família cujo nome tinha sido mudado quando as avós chegaram ao Brasil, nunca soube sua origem; cresceu em uma colônia alemã do sul do país, onde seu pai se fez alcoólatra, sua mãe cuidando dos doze filhos e filhas, a exclusão na comunidade e a expulsão do campo, a vida de exploração na cidade, a violência que lhe arrancou os dentes, a juventude e a inocência.

— Mais não a esperança, sabe? Eu queria voltá pra terra, e entrei no Movimento, melhor coisa que fiz, sabe? Aqui nós se ajuda, semo tudo companhero. Aqui nós semo pobre mais nós se diverte — e gargalhava com brio.

— Tu já sofreu muito, né?

— Sim… Sim. Mas, tem gente que sofre mais ainda. Óia, nem sei o que dizê quando vejo uma mãe sozinha, sabe? Essas que têm os fio, às vezes, até sem querê e as pessoa deixa que elas se lasque e ainda dizem que a culpa é delas. E essas mulher que apanha e apanha do marido, e num tem condição de largá do home? E óia tu, tu acha que num sofre mais que eu?

Preta não sabia, não tinha pensado nisso, mas sentia. Só lhe faltava a experiência que Eulália já tinha no movimento social.

— Nosso país é racista, Preta, tu sabe. Os preto sofre muito, e as preta sofre muito mais. E as preta, pobre e puta sofre muito mais ainda… — Eulália agora soltava um riso amargo — as veis me sinto assim, sabe? Pobre e puta, imagina se também fosse preta?? Por isso que nóis precisa de se organizá e lutá.

Às três da tarde já tinham servido almoço a todas as pessoas e uma equipe fazia a limpeza da cozinha improvisada.

— Vamo tomá um banho? Despois vemo onde vai sê nosso barraco. Você tem lona?

Preta não tinha lona. Nas reuniões preparatórias tinha sido avisada que devia levar, mas, por mais barata que fosse, seu dinheiro mal deu para um cobertorzinho e um pouco de alimento.

— Tu fica comigo, num se preocupe, pra tudo se dá um jeito.

Não deu tempo para banho.

A polícia tinha cercado o acampamento e de repente um helicóptero apareceu sobrevoando os barracos. A coordenação chamou uma assembleia e a decisão coletiva foi resistir.

Antes que se estabelecesse qualquer comunicação com a polícia, gritos foram ouvidos na entrada, tiros, bombas, e começou uma correria em direção ao centro. Muitas vozes pediam calma, as mãos ao alto indicando que estavam desarmadas, mas a tropa de choque seguia disparando e o helicóptero faziam rasantes, causando mais pânico.

— PROTEJAM AS CRIANÇAS!!! AS CRIANÇAS!!! — Educadoras corriam com crianças de todas as idades, reunindo todas num círculo e postando-se em sua defesa.

Eulália agarrou a mão de Preta e a puxou em direção à entrada.

— Numa vamo deixá eles entrá!!!

Era tarde. O pelotão de cavalaria galopava entre as pessoas, desferindo golpes de sabre, enquanto a tropa de choque disparava com balas de borracha. Preta viu um revólver na mão uniformizada, disparos e companheiras caindo, encharcando a terra com sangue.

A tropa armada de escopetas com as balas de borracha avançava sobre um barranco, disparando com muita proximidade. Uma mão forçou Preta de encontro ao chão, e Eulália apenas teve tempo de cobrir a amiga e ela própria com um pedaço de tábua: a bala atingiu sua mão, destruindo as pontas dos dedos.

O grito de dor de Lali retumbou nos ouvidos de Preta, mais que as balas, mais que as bombas, mais que o barulho do helicóptero. Um poder vindo de algum lugar ainda desconhecido para ela se transformou em coragem em seu coração e em seu corpo. Se levantou em meio à fumaça e ao clamor, apoiou Eulália e juntas correram em direção ao círculo onde estavam as crianças.

Ali juntaram seus braços aos das outras pessoas que protegiam as pequenas, e resistiram aos sabres e às balas de borracha.

Dois dias depois do despejo, Preta conseguiu ir ao hospital visitar Eulália e outras companheiras.

— Montamos o acampamento na beira da rodovia mesmo, Lali. Quando tu voltá, vai vê, tá ficando bonito.

— Logo, logo ocupamos outro latifúndio, Preta. Um dia nós conquista nossa terrinha. Onde já se viu né, tanta gente Sem Terra e tanta terra sem gente, e gente passando fome se nós pode produzir muita comida.

— Meu nome num é Preta…

— Como assim? Como tu te chama então?

— Sou Niéleni. Minha mãe dizia que era uma mulher de Mali, na África, que foi muito inteligente e valente, era uma camponesa, sabia tudo de agricultura e pecuária. Eu tinha vergonha de meu nome, Lali.

— Que nome lindo!!!! Se eu tivesse uma fia, dava esse nome pra ela.

— Obrigada, Lali. Tu me salvô a vida. Se aquela bala pegasse em minha cabeça…

— Deixa isso pra lá, mulher! O que nóis duas precisa é estudá! Já cansei de bala, de polícia, de jagunço, de fome, de…

— Sabe que me matriculei na escola do acampamento? Na Escola Itinerante.

— Escola itinerante, Ni, itinerante — Eulália ria sem cuidado — vou te chamar de Ni, posso? Só eu, ta?

— Ó, te truxe um presente.

— O que é?

— Meu turbante. Quero que você fique bonita para quando sair desse hospital, vamo fazê uma baita festa no acampamento. Fica boa logo pra usar meu turbante.

Eulália estava chorando. Era o primeiro presente que ela recebia em sua vida. Niéleni lhe abraçou forte, rindo com gosto. Era a primeira vez em sua vida que ela presenteava alguém.

*

“Não mexi comigo que não ando só…”**

As mudanças históricas dos coloridos turbantes no cotidiano das rodas, não assegura o respeito a legitimidade do povo preto, não garante compreensão e respeito as nossas diversidades e muito menos nos coloca no lugar de seus políticos e pensantes, porém hoje é possível com mais clareza e firmeza olhar nos olhos de nossos companheiros, companheiras e companheires e dizer que existimos não somente como estatísticas de violência e sim como dirigentes políticas mediante aos corpos que possuímos.

“Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, e para sua derrocada é necessário uma revolução, não é possível pensar um projeto revolucionário sem ser preto e mulher, pois quando às mulheres negras avançam toda uma sociedade se altera, somos as últimas da fila depois de ninguém, portanto, construirmos uma revolução feminista afro bantu é permitir a existência de todas nós.

Basta das diversas violências, basta de epistemicídio, nossas Beatrizes, Marias, Lélias e Suelis, precisam ser lidas e compreendidas no processo de luta de classes, já passou o tempo de desassociarmos classe de raça e gênero. Deixa para as pretas-mulheres a direção, ela conduzem.

Como dizia Audre Lorde, fomos educadas para respeitar mais o medo do que a nossa necessidade de linguagem e definições, mas se esperarmos em silêncio o que chegue a coragem, o peso do silêncio vai nos afogar. E neste mês de julho mais que os outros, o nosso silêncio será vencido e juntas construiremos o julho das pretas, o grande quilombo que traz irmanadas com nossos punhos erguidos, nossas bandeiras em alto tremuladas e nossos turbantes – coroas, para anunciar que a revolução será preta e feminista.

Viva Tereza de Benguela!

Viva às Mulheres Afrolatinoamericanas e Afrocaribenhas!!

*O conto “Receba este turbante” foi escrito pela Frente de Literatura Palavras Rebeldes do MST e está publicado no Caderno Conspiração dos Gêneros – elementos para o trabalho de base, organizado pelo setor.

**Karina Martins é militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM).

***Editado por Solange Engelmann