Por: Kathiuça Bertollo
Dia Internacional da Não-Violência contra as Mulheres
A data, estabelecida durante o I Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe realizado em Bogotá, Colômbia, em 1981, foi criada em homenagem às irmãs Mirabal. Em 1999, esta data foi reconhecida pela ONU como um dia internacional de luta. As Irmãs Mirabal: Pátria, Minerva e Maria Teresa, também conhecidas como “Las Mariposas”, se destacaram no engajamento na luta política, contra uma das piores ditaduras da América Latina, liderada por Rafael Trujillo de 1930 a 1961, na República Dominicana.
O cenário de exploração, violência e opressões: retratos da sua incidência sobre as mulheres
O cotidiano das populações e comunidades que vivem no entorno dos complexos produtivos da mineração, próximo às barragens de rejeitos e aos complexos produtivos/minas é de destruição ambiental, violência e opressões.
Kathiuça Bertollo, Mestre e Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e militante do MAM, analisa essas relações em seu artigo: Mulheres e mineração: o cenário das violências e das lutas na região do quadrilátero ferrífero de Minas Gerais-Brasil.
Este texto explicita o cenário das violências e das lutas travadas pelas mulheres contra a mineração extrativista na região do quadrilátero ferrífero de Minas Gerais – Brasil, território em que uma forte e potente atuação das mulheres ocorre historicamente. O objetivo desta reflexão é explicitar o contexto da luta de classes e como sua faceta violenta incide sobre as mulheres que possuem alguma relação com a mineração extrativista, seja como atingidas diretas, trabalhadoras desta atividade produtiva ou como parte de comunidades localizadas no entorno dos complexos produtivos e minas. Para tanto, o método assumido é o materialismo histórico-dialético e o percurso metodológico acontece a partir de pesquisa bibliográfica e documental organizada em dois âmbitos de reflexão: uma breve contextualização da mineração na região lócus do estudo a partir da condição de capitalismo dependente que se impõe e que a estrutura; em seguida, um retrato da realidade a partir de depoimentos e descrição de fatos que comprovam tal cenário. A constatação é de que a violência sobre as mulheres é estruturante e decorrente do atual modelo de mineração sustentado na superexploração da força de trabalho, no patriarcado, na misoginia, no machismo, no racismo e na destruição ambiental, e diante de tais determinantes as mulheres desencadeiam e assumem o protagonismo nas lutas sociais e resistências coletivas travadas historicamente nesta parte do vasto território latino-americano.
Introdução:
A relação ‘mulheres e mineração’ ocorre de diferentes formas. Há as trabalhadoras diretas e as terceirizadas nas mineradoras, que dispendem sua vida em prol da sobrevivência, e neste contexto são superexploradas e submetidas a condições de assédio e sexismo por chefias. Há as garimpeiras tradicionais que garantem o sustento familiar e lutam pela manutenção e preservação desse modo de vida e prática secular. Há as atingidas pelos rompimentos criminosos de barragens de rejeitos e pela destruição cotidiana que o processo produtivo desencadeia. Há as que vivenciam as dores, as perdas materiais e imateriais e o luto pela morte de entes queridos em decorrência do atual modelo de mineração, que é de acidentes e mortes. Há as mulheres estudantes, docentes e pesquisadoras, de diversas áreas do conhecimento, que se dedicam a estudar e compreender o contexto da extração mineral, colocando seus conhecimentos em prol dos territórios, comunidades e populações atingidas por esta atividade predatória. Há as lutadoras sociais que dedicam sua atuação à denúncia e ao enfrentamento à mineração extrativista, que lideram, coordenam e assumem protagonismo nos movimentos sociais, nas entidades sindicais, nas comunidades, nos coletivos populares, nos territórios.
A partir destas distintas posições e lugares ocupados, nas linhas seguintes, evidenciaremos aspectos do cenário de violências e das lutas travadas pelas mulheres contra a mineração extrativista na região do quadrilátero ferrífero de Minas Gerais–Brasil, território em que uma forte e potente atuação das mulheres ocorre historicamente.
Para tanto, o método assumido é o materialismo histórico-dialético, em que se parte da apreensão da realidade concreta.
Alcançando a essência do objeto, isto é: capturando a sua estrutura e dinâmica, por meio de procedimentos analíticos e operando a sua síntese, o pesquisador a reproduz no plano do pensamento; mediante a pesquisa, viabilizada pelo método, o pesquisador reproduz, no plano ideal, a essência do objeto que investigou (Netto, 2011: 22).
Nessa esteira, o percurso metodológico acontece a partir de pesquisa bibliográfica e documental organizada em dois âmbitos de reflexão: uma breve contextualização da mineração na região lócus do estudo a partir da condição de capitalismo dependente que se impõe e que a estrutura; em seguida, um retrato da realidade a partir de depoimentos e descrição de fatos que comprovam tal cenário.
A mineração no quadrilátero ferrífero de Minas Gerais:
um contexto de destruição e morte
O continente latino-americano é marcado secularmente pelo saqueio, expropriação, exploração da força de trabalho e destruição dos bens naturais comuns. Karl Marx (2013), nas suas clássicas formulações, já explicitava o contexto que se impusera sobre este chão e suas gentes na constituição e conformação do capitalismo enquanto modo de produção de mercadorias e de reprodução social hegemônico no globo.
No bojo do capitalismo, a América Latina se conforma a partir da colonização e da exploração enquanto colônia europeia, da escravização secular dos povos originários e africanos, das relações de opressão de sexo e gênero, da inserção subordinada na divisão internacional do trabalho, da dependência econômica-política-cultural-social aos países de capitalismo central, da superexploração da força de trabalho e da destruição ambiental dos bens naturais comuns que insiste em se perpetuar nestas primeiras décadas do século XXI reafirmando seu caráter violento e espoliador. Neste chão, as relações econômico-políticas capitalistas se conformam de modo dependente e subordinado, o que reitera a insígnia de ‘quintal do mundo desenvolvido’. Daqui, por meio das ‘trocas desiguais’ e da ‘transferência de valor’, são fornecidas às economias imperialistas matérias-primas industriais e gêneros alimentícios e sob estes aspectos nos são retirados forçosamente os bens naturais comuns e a nossa existência-vida, por meio da super exploração da força de trabalho (Marini, 2005).
No contexto do saqueio mundial e da dependência latino-americana, o estado de Minas Gerais- Brasil ocupa um lugar emblemático na história. No passado, foi saqueado pelas metrópoles europeias, e no presente, pelas nações imperialistas. É neste território que se localiza o chamado quadrilátero ferrífero que é a mais importante província mineral do sudeste do Brasil. Localizado na região centro sul do estado de Minas Gerais é o marco principal da interiorização da ocupação portuguesa no século XVIII. Desde a descoberta do ouro no final do século XVII até os dias de hoje a região do Quadrilátero Ferrífero abriga a maior concentração urbana do estado de Minas Gerais. Nele foram fundadas as primeiras vilas afastadas do litoral, Ouro Preto, patrimônio cultural da humanidade pela Unesco, e Mariana, que possuem um rico acervo arquitetônico e cultural barroco, expressão máxima do ciclo do ouro no Brasil. Ouro Preto recebeu o título de patrimônio cultural da humanidade pela Unesco em 1980. Com cerca de 7000 km2 em área o Quadrilátero Ferrífero é o limite ocidental da Mata Atlântica no centro de Minas Gerais. O estado de Minas Gerais tem na mineração uma de suas principais atividades industriais. E o Quadrilátero Ferrífero é a região que mais se destaca em função das jazidas de ferro. Estimativas do início do século apontam que mais de 55 milhões de toneladas de minério de ferro eram anualmente explotadas. A região tem grande importância econômica e social no estado. Em sua parte norte, está localizada a capital o estado, Belo Horizonte com cerca de 2,4 milhões de habitantes. Os municípios da região têm uma população que corresponde a cerca de 22% da população do estado e a sua produção abrange 26,8% do PIB de Minas Gerais. (UFOP, 2022)
Esta região possui marcas sangrentas decorrentes da destruição da fauna, da flora e dos mananciais de água, dos acidentes de trabalho, das mortes desencadeadas por inúmeros rompimentos criminosos de barragens de rejeitos da mineração extrativista em atuação. Sua história recente é marcada a ‘sangue e lama’ pelos rompimentos criminosos de barragens. Em 2015, no município de Mariana-MG, O rompimento/crime da barragem de Fundão, de propriedade das mineradoras Samarco Mineração, Vale S.A. e BHP Billiton despejou 43,7 milhões de metros cúbicos de rejeitos na bacia hidrográfica do rio Doce, deixando um lastro de vinte mortes entre moradores do distrito de Bento Rodrigues, que foi imediatamente atingido, e trabalhadores que estavam no canteiro de obras da barragem. A lama também destruiu e matou a fauna e a flora ao longo dos mais de 600 quilômetros de rios até chegar e adentrar o oceano no estado do Espírito Santo. Foram atingidos 36 municípios mineiros e 03 capixabas. (Bertollo; Nogueira, 2020: 102).
Em 2019, no município de Brumadinho-MG, o rompimento/crime da barragem da Mina Córrego do Feijão de propriedade da Vale S.A despejou cerca de treze milhões de metros cúbicos de rejeitos, tendo sido considerado o maior acidente de trabalho com perdas de vidas humanas do país. Foram causadas, imediatamente, cerca de 300 mortes de trabalhadores da mineradora que naquele momento cumpriam expediente e, também, de moradores e moradoras locais. No que se refere aos danos ambientais, além de destruir fortemente o município de Brumadinho e o distrito de Córrego do Feijão, o rompimento/crime atingiu diretamente vários municípios ao longo da bacia do rio Paraopeba causando danos irreparáveis à fauna e flora. (Bertollo; Nogueira, 2020: 102-103)
Tais rompimentos criminosos explicitam o modos operandi do capital e de seus expoentes-das mineradoras, neste chão secularmente saqueado e explorado. O padrão de reprodução do capital nos marcos do capitalismo dependente produz e transfere valor às nações imperialistas e suas classes dominantes, deixa para este chão destruição ambiental e exploração da força de trabalho, o que conforma um cenário de violências, violações, opressões. (Bertollo, 2021: 467).
É a partir de tais determinantes que a luta de classes se acirra, e nesta, as lutas sociais, dialeticamente, se afloram com força e protagonismo das mulheres, tornando as resistências cada vez mais enraizadas e articuladas nas comunidades e entre os territórios atingidos pela mineração extrativista na região.
O cenário de exploração, violência e opressões:
retratos da sua incidência sobre as mulheres
O cotidiano das populações e comunidades que vivem no entorno dos complexos produtivos da mineração, próximo às barragens de rejeitos e aos complexos produtivos/minas é de destruição ambiental, violência e opressões. Esse cenário de ‘morte em vida’ recai mais fortemente sobre as mulheres, uma vez que a sociabilidade burguesa tem a opressão de sexo e gênero como alguns dos seus pilares de sustentação. E neste território conformado secularmente pela escravização do povo negro, é imprescindível reconhecer que o racismo também se perpetua como um elemento estruturante das opressões e violências sobre as mulheres em luta contra a mineração extrativista.
Reconhecendo tais premissas violentas e opressoras, nas linhas que seguem evidenciaremos alguns âmbitos desse contexto que se põe sobre as mulheres, bem como sua força, resistência e protagonismo nas lutas travadas historicamente.
Sobre as perdas e o luto os acidentes de trabalho e as mortes na mineração são uma constante
Considerada como a atividade econômica que mais mata trabalhadores no Brasil, somente em 2016, quando a taxa nacional de óbitos no trabalho foi de 5,57 para cada grupo de 100 mil empregados formais, a mineração registrou uma taxa de 14,81 mortes, ou seja, as atividades do setor mineral matavam três vezes mais que a média dos outros setores. De acordo com os dados do Observatório de Saúde e Segurança do Trabalho do Ministério Público do Trabalho (OBSERVATÓRIO SST, 2020), nas mineradoras, no Brasil, foram 25.650 notificações de acidentes de trabalho, entre 2012 e 2018, sendo que uma parcela dessas vítimas teve que se aposentar por invalidez ou morreu. (Coelho et al., 2020: 125)
Minas Gerais possui estimativas elevadas de acidentes e mortes no processo produtivo da mineração extrativista. Oliveira (2015) afirma que entre 1986 e 2014 ocorreram 06 rompimentos que desencadearam mortes de trabalhadores da mineração no estado. A maioria destes rompimentos ocorreu na região do quadrilátero ferrífero, que em 2015 e 2019 fica marcada pelos já mencionados rompimentos da Barragem de Fundão em Mariana-MG, e da Barragem B1 em Brumadinho-MG, que ganharam repercussão mundial.
Acerca das mulheres que lutam para recomeçar suas vidas depois de terem sofrido perdas e vivenciarem a dor do luto em decorrência da morte de familiares em rompimentos de barragens da mineração em Minas Gerais, Monteiro (2020), afirma que
Todas elas são unidas pelo fato de serem mulheres. E a gente ainda tem uma cultura muito machista. Algumas não trabalhavam até então e seguiam a rotina do homem provedor. Mas, no fim, são as mulheres que ficam, são elas quem aguentam o baque. Elas precisam ser muito fortes, têm filhos pra criar, uma vida para continuar e precisam superar o trauma. O que une essas mulheres também é a força de seguir em frente.
Uma mãe que perdeu o seu filho no rompimento/crime da Barragem B1, de propriedade da mineradora Vale S.A., em Brumadinho, diz: “Vale assassina. Meu fio não sai do meu pensamento. Fico olhando pro portão e esperando. Onde já se viu mãe enterrar fio?” (Vespa, 2019). Além do luto pelos filhos já adultos, é relevante mencionar que os rompimentos criminosos ocorridos em Mariana-MG e em Brumadinho-MG causaram, respectivamente, um aborto involuntário em uma moradora do distrito de Bento Rodrigues, e a morte de uma trabalhadora grávida de uma menina. A moradora atingida, mulher gestante que sofreu o aborto relata o contexto de pânico, dor e sofrimento em meio à lama de rejeitos de minério de ferro
Eu pedi a Deus que se fosse da vontade Dele, deixasse meu filho sobreviver, mas se fosse para ele morrer, eu entenderia. Foi quando senti meu filho sair da minha barriga, caindo pelas minhas pernas. Pode ter sido melhor assim, pois engoli tanta lama que ele poderia nascer sem saúde. Pensei que também iria morrer. Até hoje sinto dores no corpo. Perdi meu filho de 3 meses e minha sobrinha, que 40 minutos antes foi em casa e ao sair me pediu benção. Vou lutar por meus direitos até o fim. Dinheiro nenhum vai trazê-los de volta. Mas não vou desistir. (Madruga, 2015).
Esse contexto de perdas e luto pelos familiares assassinados no processo produtivo da mineração extrativista é sentido pelas mães e pais, irmãos e irmãs, filhos e filhas, amigos e amigas dos homens e mulheres que saíram de casa em busca do sustento da família e jamais retornaram. Também, é muito fortemente sentido pelas mulheres companheiras desses trabalhadores, uma vez que se soma à dor e sofrimento pelas mortes, outras questões dolorosas e opressivas, tais como o machismo.
Sobre o machismo, assédios e calúnias
O capitalismo pressupõe as opressões de sexo e gênero. As tentativas incessantes de calar e ocultar as mulheres, seus anseios, pautas e lutas são uma constante tanto na esfera da produção como na esfera da reprodução social. Em uma análise crítica a tal contexto e premissas, Toledo (2017: 30) afirma:
Cultua-se a ideia de que a mulher é um ser inferior porque é mais frágil fisicamente que o homem e tem o cérebro menor e o coração maior. Portanto, seria menos inteligente, menos racional e mais emotiva e sentimental. Logo, só serve para ter filhos e cuidar da casa e da família.
O contexto da mineração extrativista na região do quadrilátero ferrífero carrega e reproduz tais âmbitos estruturantes das relações sociais sob a égide do capital. Uma mulher, viúva de seu companheiro morto no rompimento ocorrido em Brumadinho-MG relata:
E pras viúvas que ficaram tem que ter muita força, sabe, porque o preconceito é muito grande. As pessoas fazem muita piadinha. Ninguém respeita o sentimento dos outros, né. Se vê você ali conversando com a pessoa, já fala: olha lá já tá arrumando um, né. E pra pessoa, pra mulher escutar isso é muito doloroso, é muito doloroso, porque o homem não tem isso, né. O homem, se acontece alguma coisa, a esposa morre ou se ele separa, tudo é normal, e pra mulher não é normal, né. Então assim, as pessoas elas olham pra gente como: há… tá com a vida feita, né! Ha… o homem deixou a mulher, agora o outro vai pegar. Agora quem pegar, é um bom partido, né. Eu já escutei isso. Agora as pessoas falando: agora você é um partidão! As pessoas não respeitam o sentimento da gente, não. E se vê a gente rindo um pouquinho já fala: olha lá, nem lembra mais do marido, né. Só que a história, ela é outra. (Monteiro, 2020b).
Acerca do rompimento/crime da barragem de Fundão em Mariana-MG, são inúmeras as expressões do machismo e da opressão que se impõem sobre as mulheres atingidas ao longo dos 600 km de destruição causada pela lama de rejeitos. O não reconhecimento enquanto provedoras da renda familiar, pela Fundação Renova é uma dessas expressões, sendo fortemente denunciado pelas próprias mulheres atingidas e por movimentos sociais que atuam na causa.
As mulheres atingidas não estão sendo reconhecidas para efeitos de políticas de indenização da Fundação Renova. Essa violação começa no processo de cadastramento: em geral não são realizados atendimentos individuais dos membros da família, dada a situação de desigualdade de gênero imposta pela presença do patriarcado na sociedade, e em muitos casos o preenchimento das informações foram realizados pelos homens. O universo de cadastrados é em média 50% homens e 50% mulheres. Sendo que apenas 30% das mulheres recebem algum tipo de benefício, em geral na condição de dependente do marido, apesar da Deliberação nº 119 do Comitê Inter Federativo (CIF) estabelecer que no processo de indenização não deve haver discriminação de origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer outra forma, trabalhos de mulheres associados à cadeia de pesca, como a limpeza dos peixes, a preparação das redes e a pesca para alimentação, são vistos como auxiliares, não passando a integrar os auxílios e indenizações. Além desses, atividades como comerciantes/barraqueiras; vendedoras de produtos, salgados, água, chup-chup para turistas no rio; e salão de beleza, não são reconhecidos como afetados pelo empreendimento (MAB, 2020).
Outra forma de violência sobre as mulheres que decorre do rompimento/crime e do processo de reconstrução e restauração dos danos materiais, é o assédio sexual realizado por homens trabalhadores das empresas terceirizadas que passaram a conformar a dinâmica laboral e cotidiana dos locais destruídos, conforme é explicitado em reportagem especial publicada no jornal ‘A Sirene’, meio de comunicação e denúncia elaborado pelos próprios atingidos e atingidas.
Além do desafio de não serem reconhecidas como trabalhadoras pelas empresas causadoras dos danos (Samarco, Vale e BHP Billiton) ao serem consideradas como dependentes dos maridos no processo de cadastramento, as mulheres também sofrem com o assédio dos trabalhadores das terceirizadas contratadas para atuar nas comunidades. A chegada de tantos homens nas cidades de Barra Longa e Rio Doce alterou o cotidiano dessas mulheres e trouxe novos problemas para regiões que já sofreram tanto com o crime das mineradoras. (A Sirene, 2019: 7)
A defesa dos territórios, das comunidades e redes de vizinhança também coloca as mulheres como alvo de perseguição, assédio e calúnias, por vezes, de próprias lideranças locais que se alinham às mineradoras e atuam de forma a apaziguar – da pior e mais traiçoeira maneira possível – as lutas cotidianas travadas pelas lideranças mulheres que pautam os interesses legítimos dos territórios, comunidades e população, tal qual é explicitado e denunciado em notas de repúdio emitidas pela Frente Mineira de Luta das Atingidas e Atingidos pela Mineração em Minas Gerais (FLAMa).
Ameaças, agressões e assassinatos são cada vez mais frequentes em territórios que se encontram sob tensão e conflitos sociais. Nesses territórios, são comuns os casos em que homens ligados às empresas, seja por interesses políticos, seja por interesses econômicos, atuam de maneira brutal no silenciamento das mulheres lutadoras sociais. Por meio das redes sociais e de mensagens privadas repletas de ironia, sarcasmo, de ambiguidades que deixam um cheiro de ameaça no ar, esses homens, orientados pelo machismo e preconceito e, pela conivência das autoridades, se sentem totalmente à vontade para se manifestarem de forma ameaçadora e silenciadora sobre não somente as mulheres lutadoras sociais, mas também, contra qualquer mulher que ouse se manifestar contra os interesses da ordem capitalista vigente. Em Antônio Pereira, distrito duramente assolado pelos conflitos decorrentes da atividade minerária da Mina de Timbopeba, de propriedade da Vale, e de sua barragem mais próxima do meio urbano, a barragem do Doutor, não é diferente. Da mesma forma que ocorre no mundo todo, vemos nesse distrito o seguinte cenário: homens que se sentem à vontade para ridicularizar, silenciar, ofender e ameaçar mulheres que se colocam a favor e lutam pelos legítimos interesses da comunidade, da população local e contra os interesses da mineradora, que é de continuar destruindo o território e lucrando com isso. (FLAMA, 2021).
Sobre a repressão policial.
O contexto repressivo, em que se utilizam aparatos policiais para coagir e apaziguar as resistências protagonizadas pelas mulheres lutadoras sociais, é explicitado e denunciado em nota emitida pela FLAMa.
Essas repressões e criminalizações incidem fortemente sobre as mulheres lutadoras sociais. São mães, esposas, irmãs, filhas que se põem na luta e resistência, mas que são expostas e submetidas a situações de machismo, sexismo e racismo por parte das mineradoras e suas equipes de trabalho que atuam nos processos de reparação, e também por parte do poder policial que intervém nas atividades de denúncia e resistência protagonizadas pelas comunidades e por estas mulheres. (FLAMA, 2021a).
Uma das estratégias de luta assumidas historicamente pelas populações atingidas pelas mineração extrativista é o fechamento de estradas. No distrito ouropretano de Antônio Pereira ações de fechamento das estradas e paralização do trânsito, especialmente dos ônibus que levam os trabalhadores para as minas, têm sido utilizadas pela comunidade a fim de evidenciar o descaso do poder público e as violências que as mineradoras impõem à comunidade e ao território. Prioritariamente, tais ações ocorrem a partir do protagonismo das mulheres
Mulheres “Guerreiras de Antônio Pereira” fecham MG 129, nesta quarta-feira 1/12, mesmo debaixo de chuva, para reivindicar Assessoria Técnica aos atingidos pela Mineração em Antônio Pereira pararam o trevo de acesso a Bento Rodrigues. A comunidade reclama o sofrimento com os impactos do risco do rompimento da barragem Doutor. Os atingidos cobram por direitos, Assessoria Técnica Independente, novas remoções e investimento na saúde do distrito. As mulheres temiam represálias da Vale e da PM.n. (Diário de Ouro Preto, 2021).
Sobre esta mesma manifestação, Loureiro (2021) retrata o contexto de intervenção e repressão policial sobre as manifestantes:
A manifestação foi dispersada poucos minutos depois das 9h da manhã, tendo ocorrido a ação da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), com várias viaturas e policiais. A Agência Primaz apurou que essa ação não contou com a atuação de integrantes do sub-destacamento da PMMG localizado em Antônio Pereira, uma vez que o ato foi realizado fora de seus limites de jurisdição. Em vídeo divulgado nas redes sociais, a ação da PMMG foi parcialmente documentada, sendo possível ver policiais militares tentando impedir o deslocamento dos manifestantes pela rodovia, em direção ao distrito de Antônio Pereira. “Não vai ser permitido subir continuando ‘fechando’ a rodovia. Já extrapolaram o tempo, vocês não querem acordo, vocês não querem diálogo. Então o alerta já foi feito. A ordem é ‘pra’ liberar a via, ‘tá ok’? Quem recusar liberar a via vai ser conduzido em flagrante”, diz um policial, cuja identificação não é possível ser feita pelo vídeo. (Grifos originais).
É perceptível que a coerção é utilizada, mesmo que travestida sob o manto da ‘orientação’ às manifestantes. A partir de tal realidade, a FLAMa reitera
As mulheres não se calarão diante da repressão do poder público, especialmente o policial, que criminaliza quem luta e resiste ao invés de atuar sobre os verdadeiros responsáveis pelos crimes contra a vida, o meio ambiente e o bem comum das comunidades atingidas pela mineração. (FLAMA, 2021a).
Este contexto de repressão e ameaças articula-se com a burocracia e morosidade assumidas como forma de funcionamento de diferentes instâncias, inclusive daqueles que deveriam assumir a defesa dos direitos e demandas que a população apresenta.
Sobre a burocracia estatal, do judiciário, das mineradoras e da Fundação Renova
A burocracia Estatal, do judiciário, das mineradoras e da Fundação Renova no trato com as comunidades e populações atingidas é uma engrenagem funcional ao atual modelo de mineração no quadrilátero ferrífero de Minas Gerais. São notórios os desgastes, os constrangimentos, os cansaços e os adoecimentos decorrentes da morosidade destes trâmites burocráticos. Percebe-se que as lutas sociais, as denúncias e reivindicações comunitárias-populares tendem a ser desrespeitadas e sucumbidas diante dos interesses das mineradoras, que, no caso do rompimento/crime da barragem de Fundão, são materializados a partir da atuação da Fundação Renova, com respaldo legal-jurídico e normativo pelo Estado Brasileiro (Bertollo, 2018).
Passados 06 anos do rompimento/crime da barragem de Fundão, e 03 anos do rompimento/crime da barragem B1, temos um cenário de morosidade em ambos os casos. Na voz dos/as atingidos/as e dos movimentos sociais, estes são “crimes que se renovam” cotidianamente, e “por renovar-se a cada dia, novos dilemas, dificuldades e entraves se colocam a estes sujeitos vítimas do processo de extração de mais valor via processo produtivo pautado na mineração extrativista. (Bertollo, 2018: 249).
Com tantos recursos e poder, era de se esperar que as mineradoras buscassem agilidade e competência no processo de reparação, mas o que se vê são caras propagandas transmitindo inverdades no horário nobre da TV e a disponibilização dos recursos para a Fundação Renova, uma organização criada por essas empresas para “gerir” o processo de reparação e quase nenhuma efetividade nas respostas a quem de fato interessa: as pessoas atingidas. (Cáritas Brasileira, 2020)
Acerca do processo de reparação dos danos (e da burocracia e morosidade) decorrentes do rompimento/crime da barragem de Fundão e que perpassam a relação entre os/as atingidos/as, a Fundação Renova e as equipes de Assessoria Técnica Independente (ATI); as entidades Cáritas Brasileira, FLAMA e Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (AEDAS)- denunciam, a partir de uma ‘Nota pública em defesa das matrizes de danos construídas com a população atingida por uma indenização justa e integral’, que
A Fundação Renova é a responsável pela reparação dos danos, contudo, vem conduzindo as negociações para indenização com regras e critérios elencados de forma unilateral, propondo valores irrisórios e visando defender os interesses de suas mantenedoras, rés do desastre-crime: Samarco, Vale e BHP. O modelo indenizatório proposto pela Fundação Renova no município de Mariana, assim como o sistema indenizatório simplificado chamado “Novel” aplicado em Barra Longa e em município da Bacia do Rio Doce, reproduzem a violação aos direitos humanos e ao meio ambiente condizentes com o nível do constrangimento causado pelo desastre-crime. (Cáritas, 2021)
É superficial e sem efetividade o conjunto de ações operacionalizadas pela Fundação criada para fins de reparação e reconstrução das comunidades atingidas e destruídas. E nesse emaranhado de programas, reuniões, cadastros e procedimentos excludentes, as mulheres se configuram como duplamente violentadas e oprimidas, conforme é denunciado pelo Movimento de Atingidos por Barragens (MAB)
Sobre o cadastro, o AFE e o PIM, os programas da Fundação Renova que as mulheres reclamaram na ouvidoria, as principais questões colocadas por elas são de informações sobre a situação do cadastro, atrasos, demoras e erros no pagamento dos auxílios e das indenizações. Em um processo em que as mulheres não são reconhecidas e não recebem seus direitos de forma independente é de se esperar um aumento da vulnerabilidade, dificuldade de arcar com os custos do lar, sobrecarga doméstica e na saúde mental, assim como aumento dos conflitos familiares. (MAB, 2020)
Em relação ao rompimento/crime da Vale em Brumadinho, a situação também é de morosidade, burocracia, pactuações e negociações sem a presença, e que desconsideram as demandas dos/as atingidos/as.
Enquanto os problemas econômicos, sociais e ambientais se ampliam, a Vale busca ter o controle do processo de reparação dos danos causados por ela mesma, utilizando-se de todos mecanismos à disposição da segunda maior mineradora do mundo. Além de articular nos governos e no Poder Judiciário diversas formas de negar direitos, dificultando a participação dos atingidos no processo, a empresa trabalha cooptando lideranças locais para criar conflitos entre os moradores e enfraquecer a luta coletiva. Além disso, promove assédio moral através de seus funcionários. Paralelamente a essa atuação deplorável no território, em fevereiro de 2020, a empresa fez um acordo com o governo do estado e entidades de justiça, sob sigilo e sem o envolvimento das famílias atingidas, economizando R$ 17 bilhões. Dos R$ 54 bilhões pedidos nas ações de reparação dos danos, a Vale vai pagar apenas R$ 37 bilhões. Parte desse montante será transferido para o governo do estado investir em obras que nada têm a ver com a reparação do crime de Brumadinho. (MAB, 2022)
O contexto burocrático, moroso e desrespeitoso também é cotidianamente vivenciado pelas comunidades e populações que residem no entorno das barragens que estão em alto risco de rompimento. Essa é a situação a que o distrito de Antônio Pereira é submetido há anos em decorrência do complexo produtivo da Mina Timbopeba e da barragem do Doutor, localizada a poucos metros das residências, escolas, rios e áreas de preservação ambiental. No entanto, a Vale S.A. recusa o diálogo e dificulta/não presta atendimento efetivo à comunidade. A opção assumida pela mineradora é a burocracia amparada em trâmites estatais e jurídicos que portam consigo a morosidade dos processos e deliberações.
Em reunião online de negociação entre Vale, Ministério Público de Minas Gerais e os atingidos de Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto (MG), que aconteceu na terça-feira (11), os atingidos discutiram as principais pautas para a região e as ações da mineradora que impactam e amedrontam o dia a dia da comunidade. Apesar do diálogo, muitas dúvidas ainda permanecem no ar e a empresa não concordou em marcar uma nova data para continuar esclarecendo informações para a população afetada da região, na negociação, representantes da Vale não levaram nenhuma resposta sobre os 22 pontos de reivindicação apresentados pela comunidade e pelo Ministério Público, não trouxeram informações sobre a nova mancha de inundação, anunciaram que a empresa não pagará por uma assessoria técnica para os atingidos e não concordaram em marcar uma nova data de reunião, mostrando o desinteresse em seguir com as negociações coletivas e extrajudiciais. (MAB, 2020)
A comunidade há anos enfrenta, denuncia e expõe os desmandos da mineradora Vale S.A. em relação às pautas urgentes e aos direitos mais elementares da população ali residente. Em manifestação pacífica, em que foi realizado o fechamento de estrada por quase 05 horas, uma moradora atingida denuncia e reivindica:
Nós somos moradoras de Antônio Pereira, e estamos parando a MG-129 para reivindicar direitos nossos que a Vale está tirando. Nós estamos aqui no ponto onde o trânsito vai para Bento Rodrigues e para Antônio Pereira, para que a gente chame a atenção, e que a gente seja ouvido, por conta do desespero que nós estamos sofrendo no território. As pessoas estão em pânico, não tem saúde, não confiam mais nas informações da Vale, que tem dificuldade de comunicação com a comunidade. Então, nós estamos aqui reivindicando os direitos e pedindo, gritando socorro, pedindo apoio de toda a comunidade das cidades vizinhas e dos trabalhadores para abraçar nossa causa, porque a situação nossa ‘tá’ muito complicada e desesperadora. Estamos totalmente desolados e jogados às traças. (Loureiro, 2021)
Tal situação impõem às comunidades atingidas um contexto de adoecimento físico e mental, que fortemente atinge as mulheres por estarem na linha de frente das resistências.
Sobre o adoecimento físico e mental
A ofensiva sobre a condição de saúde física e mental das populações próximas aos complexos produtivos, barragens de rejeitos e atingidas diretamente pelos rompimentos criminosos é estruturante da mineração extrativista na América Latina. A contaminação da água, do ar e do solo provoca adoecimentos e mortes, e neste cenário, “os problemas de saúde gerados pelos crimes de mineração estão entre os principais problemas sofridos pelas mulheres atingidas” (MAB, 2019).
Em reunião com o Ministério Público Federal, ocorrida no mês de janeiro de 2022, membro da coordenação estadual do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), afirma
A gente debate a condição como um todo, a contaminação da água com metais pesados, a questão da saúde de toda a comunidade exposta a esses metais e também a questão das detonações que estão rachando as casas e isso tem que ser reparado. (Diário de Santa Bárbara, 2022: 4)
Nesse mesmo espaço de denúncia e questionamento aos órgãos legais e normativos da justiça brasileira, uma atingida – moradora da comunidade em que está instalada a barragem da mineradora AngloGold relata sobre o atual contexto de adoecimento que se abateu sobre a população do município de Santa Bárbara-MG.
A comunidade não confia no plano de contingência e gerenciamento de crise promovido pela empresa e a situação psicológica já não se encontra estável. Existem pessoas com dificuldades para cumprir suas obrigações pelo estado emocional comprometido, crianças com dificuldades e distúrbios de sono pelo grande impacto causado pela falta de responsabilidade social da empresa. Além de pessoas que tiveram gastos com atendimentos médicos e ambulatoriais. (Diário de Santa Bárbara, 2022: 4)
O agravamento da condição de saúde das mulheres atingidas pelo rompimento/crime da barragem de Fundão, tornou-se explícito. Estudo realizado expõe os seguintes dados:
Saúde, com destaque à saúde física em geral (12,14% de recorrência), acesso à saúde (11,82%) e a evolução ao longo dos anos dos relatos de saúde mental, que vão de 1,2% em 2016 para 12,8% em 2019. Ainda, os relatos que apontam para condições crônicas como câncer mostram-se críticos e extremamente sensíveis, assim como os que relatam tentativas de suicídio e depressão, (v) Sobrecarga doméstica, que se apresenta como o segundo principal tema identificado nos relatos (33,92%), sendo composto principalmente de demandas relativas às dificuldades de manter os custos do lar (23, 64% do total geral, e que, ao longo dos anos, aumenta de 5,2% em 2016 para 37,9% em 2019) e também cuidados com filhos e netos (16% dos relatos “Mulheres”); (vi) por fim, e não menos importante, aponta-se para relatos que contém descrições sobre conflitos familiares (44 relatos) e casos de violência doméstica. (7 relatos) (Fundação Getúlio Vargas, 2029: 10-11)
Nesse bojo de adoecimento físico e mental, uma situação que passou a ser rotineira na vida das mulheres atingidas pelos rompimentos criminosos de barragens é o adoecimento de seus familiares, especialmente seus filhos que carecem de maiores cuidados pela condição de serem crianças.
Uma moradora de Barra Longa-MG, município atingido pelo rompimento da barragem de Fundão, afirma sobre o adoecimento de sua filha, uma criança com poucos anos de vida, em decorrência da contaminação pelos rejeitos de minério de ferro e demais substâncias tóxicas presentes na lama que atingiu o centro do munícipio, e se não bastasse, foi utilizada para calçar a rua que dá acesso à sua moradia levando as substâncias tóxicas até a porta de sua casa. Diz ela: “recebeu um diagnóstico gravíssimo. Está com inflamação do cérebro e no intestino e isso pode mudar o rumo da vida dela” (Maciel; Pina, 2019).
Sobre as consequências do rompimento/crime da barragem B1 da Vale em Brumadinho-MG, que atingiu a Bacia do Rio Paraopeba e deixou um lastro de contaminação e adoecimentos, uma moradora de São Joaquim de Bicas-MG relata acerca da qualidade da água que chega nas torneiras de sua residência e é utilizada para o consumo humano:
Como coloco uma água dessa para meu filho comer e beber? […] Antes da barragem estourar a gente não via a água assim. Porque eles estão tratando com mais produto? É porque tem alguma coisa na água. […] A gente vem sofrendo com a poeira. Posso limpar a casa agora e 30 minutos depois ela já estará suja novamente. A Vale poderia colocar capota nos caminhões e não coloca. Isso está nos prejudicando muito; […] De um ano para cá, a asma piorou muito. (MAB, 2021)
Outra mulher atingida relata: “[…] aqui virou um mausoléu, as pessoas ficam tristes pelos cantos. A minha vida virou hospital. A minha sogra ficou tão estressada e triste que teve vários AVCs [Acidentes Vasculares Cerebrais] e faleceu” (Lopes, 2020).
Tais relatos apontam que a condição de saúde física e mental envolvem subjetividades destruídas e preocupações com questões materiais diretamente vinculadas à sobrevivência e bem-estar familiar, e nestas, os relacionamentos estabelecidos com demais membros da família, seja com os seus pais, filhos e netos, e/ou com seus companheiros.
Percebe-se que apesar da condição de atingida diretamente pelo rompimento/crime, são as mulheres as mais responsabilizadas pelo cuidado aos seus, o que firma um panorama de violência e negação de direitos que envolve diferentes instituições e interesses, muitas vezes, contrários ao que é legítimo e reivindicado pelas comunidades, configurando um cenário que somente perpetua o adoecimento.
Esse mesmo contexto, é impulsionado por outra forma de opressão e violência – o racismo, que se perpetua nessa sociabilidade de classes sociais antagônicas. Assim, a questão étnico-racial é mais um elemento conformador da exploração e opressões cotidianas.
Sobre o racismo
O processo de colonização dizimou as populações originárias da América Latina. O Brasil, o estado de Minas Gerais e as cidades que compõem o que atualmente chamamos de quadrilátero ferrífero, especialmente Mariana-MG e Ouro Preto-MG, são locais marcados pela diáspora e escravização do povo negro, trazido forçadamente para trabalhar nas minas de ouro e diamantes.
Dados do Censo 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), explicitam que a “população negra superou a branca em Minas Gerais. […] 45,4% dos mineiros se autodeclararam brancos contra 53,5% que se denominaram negros. […] 9,2% da população é preta e 44,3% parda” (MELLO, 2011). Dados mais recentes explicitam que “Em Minas Gerais, em 2012, a população negra representava 55,4% do total da população do estado. Em 2019, essa proporção aumentou, passou para 61,0%” (Fundação João Pinheiro, 2020).
Essa realidade étnico-racial explicita-se fortemente nos territórios diretamente atingidos pelo rompimento/crime da barragem de Fundão. Conforme Wanderley (2015), na época do rompimento e tomando por base dados do IBGE, a proporção de pretos e pardos no povoado de Bento Rodrigues era de 84,3%. No povoado de Paracatu de Baixo, também pertencente ao município de Mariana-MG, a proporção era de 80%. Já o percentual total da população preta e parda no município era de 67,3%.
Em relação à Barra Longa, município que também foi atingido e destruído pelo rompimento/crime da barragem de Fundão, o autor explicita que a proporção de população preta e parda, na época do rompimento/crime, era de 67%, sendo que no povoado de Gesteira, que foi completamente destruído pela lama, a proporção era de 70,4% (Wanderley, 2015).
Em Ouro Preto-MG, município vizinho de Mariana-MG, conforme dados do Censo 2010- IBGE, “70% da população se autodeclara negra” além disso, é marcado por “toda uma história de escravidão” (Coelho, 2017).
A partir de tais estimativas censitárias, é possível perceber a expressiva presença de descendentes dos negros e negras escravizados. São estes homens e mulheres, que na atualidade, conformam majoritariamente a população e consequentemente, a classe trabalhadora na região. Considerando que o capitalismo se estrutura a partir do antagonismo entre as classes sociais fundamentais, neste território, o racismo constitui-se em uma engrenagem da perpetuação da exploração capitalista e este determinante é cotidianamente enfrentado e denunciado pelas populações e comunidades atingidas.
Em Audiência Pública ocorrida no mês de novembro de 2019, no município de Barra Longa-MG, as/os atingidas/os denunciaram a perseguição política às/aos militantes, o racismo institucional e a discriminação sofrida por parte da Fundação Renova.
Nunca foi fácil ser negro no Brasil, mas, antes do crime da Vale, Samarco e BHP Billiton, eu não precisava me preocupar com o racismo. Eu não sentia essas coisas na pele, porque eu vivia no meu mundo, quietinha no meu cantinho, lá no meu alto de morro. Após o crime, eu precisei ocupar espaços que, até então, não eram meus. Desde então, eu tenho sentido, na pele, no corpo e na alma, a chicotada da elite. A cada passo que eu dou, eu vejo o preconceito e o racismo. A Fundação Renova nos persegue por sermos negros (as), sermos do alto do morro e militantes. Isso não tem sido fácil. (A Sirene, 2020: 8)
Tal realidade é forte e dolorosamente explicitada por uma mulher lutadora social, quando nos diz acerca da discriminação e das tentativas de cooptação que vivencia:
Por ser negra, mulher do alto do morro, já é uma invisibilidade, estou na luta já tem cinco anos. Imagina uma mulher preta do alto do morro militante? A empresa me fez uma proposta de sair da militância, de sair da frente das reuniões, se eu deixar de lutar pelo povo serei reconhecida como atingida e terei todos os direitos reconhecidos, inclusive o cartão emergencial retroativo. É dessa forma que as empresas atuam no território, se você é militante, se você tem coragem… a empresa é racista e machista, se você consegue ter espaço de fala você é ameaçada, tentam nos silenciar o tempo todo. Um funcionário da empresa em uma reunião de negociação, me mandou calar a boca. São essas coisas que uma atingida passa quando ela assume a posição de linha de frente. (Atingida de Barra Longa) (Jorge et al. 2020: 149)
As mulheres nas lutas:
as sementes foram plantadas e germinam
Acerca do modo de produção capitalista e da condição da mulher neste sistema econômico, político, histórico e cultural, Toledo (2017: 180) afirma que
[…] as mulheres não devem sentir a opressão e submissão como uma exceção à regra. Pelo contrário, devem senti-la como a confirmação da regra, como a confirmação de que vivemos num sistema injusto e desigual, em que o que prima é a opressão e a desigualdade.
Reconhecemos que, apesar das particularidades territoriais e culturais, a exploração, as opressões e violências advindas do contexto da mineração extrativista na região do quadrilátero ferrífero de Minas Gerais- Brasil e que recaem sobre as mulheres lutadoras sociais são semelhantes às vivenciadas pelas luchadoras e defensoras ambientales do Equador, do México, da Nicarágua, da Colômbia, do Peru, da Argentina e demais territórios do nosso continente que sucumbem à logica extrativista ao longo dos séculos.
A partir de tais premissas, dos relatos e descrições das violências e violações, dos sofrimentos e lutos, do machismo e do racismo que recaem sobre as mulheres, conforme procuramos evidenciar nas linhas anteriores, enfatizamos que no contexto da mineração extrativista na região do quadrilátero ferrífero de Minas Gerais – Brasil é factível que, dialeticamente, as mulheres “[…] são a linha de frente de todas as lutas, as coordenadoras de Grupo de Base, as mais presentes nas Comissões Locais e em todas as negociações” (MAB, 2020).
Hoje a mulher tomou a posição de defender os direitos tanto quanto atingida como mãe de família. A gente melhora quando acredita que as coisas podem ser mudadas. Leva tempo, dá trabalho, mas a gente tem que fazer o que é correto e justo. (MAB, 2021).
A partir de toda modificação imposta às suas vidas, em que se tornaram de uma hora para outra atingidas diretas do maior crime socioambiental do país, as mulheres inseriram-se cada vez mais na dinâmica das lutas sociais na região, nos espaços institucionais e políticos de enfrentamento à mineração extrativista, às mineradoras causadoras do rompimento/crime e à própria Fundação criada para fins de reparação, considerando sua questionável atuação.
E nos territórios que estão sob a iminência de novos rompimentos criminosos de barragens de rejeitos, as mulheres inspiram-se nessas posições e potencializam e articulam suas lutas a fim de denunciar a condição a que suas comunidades estão submetidas, bem como reivindicar procedimentos técnicos por parte das mineradoras para a não repetição de crimes da mineração nessa região dolorosamente marcada a “sangue e lama”.
Esta região que historicamente é reconhecida pelas lutas travadas desde o período colonial especialmente em relação à escravização do povo negro e à condição a que eram submetidos nos trabalhos nas minas, no tempo presente, reivindica esse passado de resistência e inscreve as pautas e demandas a partir das determinações econômicas, políticas, culturais e sociais que o capitalismo institui e perpetua neste chão a partir de um modelo de mineração submetido à lógica da mundialização do capital, dependência, destruição ambiental e superexploração da força de trabalho.
Assim, é fundamental reconhecer que a mineração extrativista fortemente ampliada e impulsionada nas últimas décadas em nosso continente, intenta, além da obtenção da mais valia e do lucro dos acionistas das mineradoras pela exploração e destruição física da força de trabalho, a dominação subjetiva, cultural, política, de gênero e racial nos territórios e comunidades, e nesse sentido, são as mulheres as prioritariamente atacadas devido à posição de protagonismo nas lutas e denúncias que realizam.
Gualba (2019: 24–25) afirma que:
El modelo extractivista concibe a la tierra y a los cuerpos de las mujeres como territorios sacrificables, agudiza y replica la violencia y la crueldad sobre estos cuerpos cuyo resultado extremo se convierte en muerte. […] Pese a ello, las mujeres han logrado ocupar espacios de poder, han comenzado a desempeñar funciones claves y estratégicas en los momentos de conflicto. Esto nos permite hablar de una feminización de las luchas contra el extractivismo […].
Em reportagem especial sobre o ‘8 M’ publicada no jornal A Sirene (2019) de partida é afirmado que “Ser mulher é uma luta”. As mulheres atingidas pelo rompimento/crime da barragem de Fundão afirmam:
“Nós não temos a opção de não estar na luta. É isso ou é isso. Eu faço o máximo para que a minha fala seja para todos, porque a nossa luta, como atingidas, é por todos”.
“Se a gente desistir dessa luta, tudo para. Mas, se a gente continua, a gente vai crescendo, vai conseguindo nosso objetivo, ajudando o outro, a família, a comunidade”.
“A gente vai para a luta procurar o direito da gente. Eu não tenho medo não, eu vou. Em todos os lugares que precisa ir, nós vamos”.
“Nós estamos sempre unidas. Toda reunião, ninguém falta. Não pode faltar, porque é lá que nós brigamos e conquistamos nossos direitos”.
“Eu vejo que as mulheres são muito participativas, mesmo com todas as outras jornadas que elas têm: família, filhos, marido, algumas trabalham fora”.
“Fico orgulhosa de ver as mulheres à frente. Eu falo “vamos lá, vamos caminhar juntas”. Não podemos permitir que as pessoas diminuam a gente e que a gente se sinta diminuída”.
“O que me faz estar na luta, muitas vezes, é o ‘não’ que a gente recebe. Nós temos mais força para conseguir um ‘sim’ sendo um grupo maior. O objetivo da minha luta é este: enxergar a necessidade do outro. Com a minha necessidade, eu enxergo a necessidade do outro. Eu luto pela comunidade […]”.
“A minha motivação é que sou ativista, eu luto por direitos. Não tem forma melhor de lutar do que em grupo. Lutando sozinha fica mais difícil alcançar o seu objetivo. Agora, nós somos um grupo grande […]”.
“Nós quebramos o preconceito que existe na sociedade machista de não dar crédito ao que as mulheres falam, de colocar as mulheres lá embaixo”.
A partir de tais relatos, que demonstram a aspereza de ser mulher lutadora social no enfrentamento à mineração extrativista na região do quadrilátero ferrífero de Minas Gerais- Brasil, também é possível perceber a potência, a coletividade e o intento de superar a exploração, opressões, destruição ambiental e mortes que a mineração extrativista desencadeia. As mulheres deste território estão em marcha e não se calarão frente aos ditames do capitalismo, do patriarcado e do atual modelo de mineração em voga.
Considerações finais
Do passado colonial, da escravização do povo negro, da extração de ouro, ao presente sob os marcos do capitalismo monopolista, do trabalho assalariado e da extração de minério de ferro, a região do quadrilátero ferrífero de Minas Gerais–Brasil ocupa lugar emblemático na história mundial.
O atual modelo de mineração é uma das engrenagens da perpetuação da dependência em relação aos países imperialistas. A destruição ambiental e a expropriação são estruturantes da mineração extrativista. Os rompimentos criminosos de barragens de rejeitos são máximas expressões da superexploração da força de trabalho, e tudo isso conforma de modo muito agravado e violento o contexto da luta de classes neste território (Bertollo, 2017).
Diante de tal contexto, as mulheres têm assumido protagonismo nas lutas sociais travadas. Como resposta às manifestações de resistência frente às violências e opressões desencadeadas pela mineração extrativista, sofrem ataques, ameaças, cerceamentos, manifestações racistas, machistas, misóginas, repressão policial, calúnias, assédios, burocracias e morosidade nas respostas às demandas e pautas legítimas que apresentam. Tais tentativas de silenciamento partem de aparatos estatais-jurídicos e das mineradoras, que possuem um expressivo arsenal técnico, financeiro e burocrático direcionado ao apaziguamento dos conflitos sociais e ambientais nos territórios em que atuam.
Diante dessa realidade, apontamos a importância e necessidade de assumir cada vez mais fortemente o referencial teórico e político organizativo a partir da teoria social crítica a fim de compreender, para além da aparência, o capital enquanto uma relação social. Compreender o modo de produção capitalista e a extração de mais valor a partir da propriedade privada dos meios de produção e da exploração da força de trabalho via trabalho assalariado e, nesse sentido, compreender a particularidade que este modo de produção assume na América Latina, no Brasil e em Minas Gerais, território secularmente marcado como colônia da Europa, e que após a sua independência formal insere-se de forma subordinada na divisão internacional do trabalho, o que reafirma e conforma sob os fundamentos capitalistas a dependência e subordinação externa.
Assim, torna-se imprescindível compreender as classes sociais –suas conformações, expoentes e interesses, e neste bojo, o Estado– e seu caráter classista enquanto “comitê executivo da burguesia”. Ainda, compreender e reconhecer as distintas formas de opressão que este modo de produção requer para sua perpetuação, especialmente as opressões étnico-raciais e de gênero. Somente assim é possível avançar no entendimento e tomada de consciência em relação à exploração, opressões e violências próprias e estruturantes do capitalismo dependente.
A partir de tais premissas, é possível impulsionar e potencializar as lutas sociais e os enfrentamentos necessários e urgentes de serem protagonizados pela classe trabalhadora.
Potencializar o trabalho de base, as ações construídas desde e pelas populações e comunidades atingidas é tarefa primeira. Essa não é uma tarefa individual ou espontaneísta. Deve ser coletiva e possuir a perspectiva internacionalista. Nesse sentido, entidades sindicais, partidos políticos do campo da esquerda, organizações comunitárias, comitês populares, movimentos sociais, frentes amplas, comunidades diretamente atingidas e demais expoentes da classe trabalhadora portam em suas mãos a possibilidade histórica de revolucionar esta sociabilidade da barbárie e construir um novo tempo histórico com justiça, igualdade e liberdade à humanidade. É certo que nessa tarefa histórica cada vez mais urgente de se tornar realidade, as mulheres já possuem protagonismo.
Movimento pela Soberania Popular na Mineração
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