Marina Rossi

No sertão do Ceará, a pouco mais de 200 quilômetros da capital Fortaleza, os 43 mil habitantes de um pequeno município vivem à sombra de uma montanha. A imensa elevação rochosa que marca a paisagem de Santa Quitéria não funciona apenas como um escudo contra o sol escaldante do semiárido nordestino — ela também concentra a maior reserva de urânio do país, matéria-prima para a geração de energia nuclear.

Há pelo menos duas décadas, os moradores ouvem promessas de que a extração do minério vai trazer empregos e riqueza. O projeto, no entanto, enfrenta resistência, principalmente na zona rural. A população teme que a radiação do urânio gere problemas de saúde e que a mineração consuma boa parte das já escassas reservas de água da região. Após 20 anos de idas e vindas, a exploração nunca esteve tão perto de sair do papel.

Descoberta em 1974, a jazida — que além de urânio contém também fosfato — representa um negócio estratégico para o Consórcio Santa Quitéria, formado pela estatal INB (Indústrias Nucleares do Brasil) e pela empresa Galvani, do setor de fertilizantes. Em nota enviada à reportagem, o grupo nega que a exploração da mina vá esgotar a água do município. Já sobre os riscos de contaminação, o texto sustenta que “não há evidências de efeitos adversos à saúde em doses baixas, como é o caso do urânio em seu estado natural”. Leia aqui a íntegra do posicionamento.

No imaginário popular local, porém, a exploração do minério assume as feições de um “dragão nuclear”. No final de novembro, dezenas de pessoas fizeram uma passeata contra o projeto, lideradas pelo MAM (Movimento pela Soberania Popular na Mineração). Munida de cartazes e gritando “água sim, urânio não”, agricultores familiares percorreram as ruas da cidade até a sede do consórcio.

A estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e a empresa privada Galvani, do setor de fertilizantes, compõem o Consórcio Santa Quitéria – Fernando Martinho/Repórter Brasil.

A apreensão tem motivo: o início da extração de urânio em Santa Quitéria parece cada vez mais próximo. Em setembro, a CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear), vinculada ao governo federal, deu sinal verde para a exploração do fosfato —insumo básico para a indústria de fertilizantes. Agora, o órgão analisa a autorização da mineração do urânio. Em nível estadual, o governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), já assinou um memorando para alinhar compromissos com o consórcio.

Além disso, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) aguarda a entrega do estudo de impacto ambiental até o final deste mês. Essa etapa é crucial para a aprovação do licenciamento ambiental do empreendimento —é a terceira vez, em duas décadas, que o consórcio tenta cumprir essa exigência.

A primeira ocorreu em 2004, quando chegou a obter a licença prévia da Secretaria de Meio Ambiente do Ceará. Porém, após uma ação movida pelo MPF (Ministério Público Federal), a Justiça determinou que a concessão seria de competência do Ibama, anulando a concessão estadual.

Integrantes do Movimento pela Soberania Popular na Mineração – Fernando Martinho/Repórter Brasil.

Impacto ambiental

Em 2015, o empreendimento entregou ao órgão federal o estudo de impacto ambiental, mas o licenciamento foi negado quatro anos depois. “Havia tantas falhas que não era possível atestar nem mesmo a inviabilidade técnica do projeto”, afirmou um servidor do Ibama que preferiu não ser identificado. A terceira tentativa está em curso, desde 2020.

Após a entrega do estudo de impacto, o órgão federal tem ao menos um ano para analisar o documento e decidir pela concessão ou não da licença. “O Ibama agora é o ponto focal para o projeto avançar”, afirma Carlos Freire Moreira, presidente da Aben (Associação Brasileira de Energia Nuclear) e ex-presidente da INB.

Segundo o servidor do órgão ambiental federal ouvido pela reportagem, há “muitas questões difíceis de serem solucionadas”. A principal delas é a água, consumida em larga escala no processo de extração e beneficiamento do minério.

A Repórter Brasil solicitou entrevistas com a prefeita de Santa Quitéria, Lígia Protásio (PP), e com o governador Elmano Freitas, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem. O texto será atualizado caso os posicionamentos sejam enviados.

Escassez de água

Apenas metade da população de Santa Quitéria tem acesso a água encanada, segundo o Sistema Nacional de Informações de Saneamento. Não à toa, o município está entre as 20 cidades do Ceará com a maior quantidade de cisternas, de acordo com dados obtidos via Lei de Acesso à Informação.

O açude Edson Queiroz, distante 15 quilômetros do centro da cidade e responsável pelo abastecimento de Santa Quitéria, também será fonte para a mineração – Fernando Martinho/Repórter Brasil.

O projeto prevê que o açude Edson Queiroz, distante 15 quilômetros do centro da cidade e responsável por abastecer todo o município, também servirá de fonte para a mineração. Para fazer chegar até a jazida os 855 mil litros de água por hora de que a operação necessita, o governo do Ceará se comprometeu a construir uma adutora.

O consórcio Santa Quitéria afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que a adutora abastecerá também a população de um distrito e dois assentamentos no entorno da fazenda Itataia, onde fica a mina. “Estas localidades, que sofrem atualmente com a escassez de água, terão acesso a água tratada e suficiente para atender 100% da população desses assentamentos”.

A oferta, no entanto, é vista como “chantagem” por parte da população. “Não precisa de mineração para dar acesso a água para as pessoas”, diz Pedro D’Androsa, membro do Movimento pela Soberania Popular na Mineração.

Agricultores em protesto contra extração de urânio em Santa Quitéria – Fernando Martinho/Repórter Brasil.

Efeitos da radiação

O consórcio prevê que a maioria da produção da jazida será de fosfato —e só 0,2% de urânio. Apesar do pequeno percentual, a produção estimada impressiona: 2,3 mil toneladas de urânio por ano, o que faz da mina de Santa Quitéria o maior depósito desse elemento químico da América Latina, segundo Moreira.

A agricultora Patrícia Gomes, 31, também mora em uma dessas comunidades, a dois quilômetros da mina. Ela acredita que a radiação seja a responsável pela doença de seus familiares. “Meu pai trabalhou na abertura da galeria da mina, na década de 1970, e morreu de câncer no intestino”, conta ela. “Já a minha mãe cozinhava e lavava a roupa dos trabalhadores e teve câncer de estômago”. Patrícia tem um lote no assentamento Queimadas, onde também há outras 17 famílias.

Entretanto, não há estudos que comprovem a relação entre a mina e os casos de câncer enfrentados por familiares de Patrícia ou por outros moradores. Dados do DataSUS, do Ministério da Saúde, consultados pela Repórter Brasil, mostram que Santa Quitéria não figura entre os municípios cearenses com os maiores índices da doença no estado.

No mês passado, o CNDH (Conselho Nacional de Direitos Humanos), vinculado ao governo federal, aprovou um relatório sobre as violações relacionadas ao projeto de mineração. Dentre a série de apontamentos, o documento elenca a escassez hídrica, a falta de escuta à população local e a omissão dos riscos relacionados à radiação.

O consórcio afirma que tem apresentado e discutido o projeto “abertamente com representantes da sociedade civil de diversas localidades. Como parte desse processo, também foram realizadas audiências públicas em Santa Quitéria, Itatira e Canindé em junho de 2022”.

 

Movimento pela Soberania Popular na Mineração

 

publicada originalmente em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/reporter-brasil/2023/12/15/agua-sim-uranio-nao-agricultores-no-ce-temem-que-mineracao-esgote-acude.htm