A empresa beneficia o agronegócio com sua logística, além de atuar na reconcentração de terras que pertencem aos camponeses.

Por Marcio Zonta e Dioclécio Gomes

 

São exatos 8h37 da manhã, quando a reportagem adentra a estrada de terra conhecida como “da reta” com destino ao Novo Oriente, um conglomerado de comunidades rurais que margeiam a Estrada de Ferro de Carajás (EFC) em Açailândia, interior do Maranhão, distante 520km da capital São luís.

Apesar do dia ainda estar em seu início, o calor é arrebatador. Os cerca de 20 km percorridos da estrada vão revelando a emblemática disputa territorial na região. Entre uma mata nativa minoritária que resiste, surge plantações de eucaliptos intermináveis e muitos clarões onde a imensidão toma conta de uma paisagem impiedosamente mórbida.

Os eucaliptos, outrora, serviram para abastecer os fornos das siderúrgicas  para transformação de parte do minério de ferro em produtos semi elaborados nos anos de 1990, sob domínio da Vale do Rio Doce, que levava em seu bojo do projeto estatal, Programa Grande Carajás, a criação de siderurgias em Marabá (PA) e Açailândia (MA).

Hoje, com praticamente todo volume mineral in natura da Vale voltada exclusivamente para exportação, principalmente para China, as fazendas de plantação de eucalipto ficaram de posse da empresa Suzano Papel e Celulose e as siderurgias ou fecharam ou se converteram em outras cadeias produtivas, como produção de cimento.

A vez da Soja

Na chegada no Assentamento João do Vale, organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra- MST, Divina Lopes dirigente do movimento no Maranhão e professora da escola do assentamento, explica que a ação da mineradora Vale foi motivando a criação de ciclos de exploração de comodities agrícolas na cidade ao longo dos anos, menosprezando e marginalizando a força camponesa de produção de alimentos.

“Açailândia já passou por vários ciclos, como do desmatamento para extração da madeira de suas florestas, concomitante ao projeto de logística de Carajás da Vale e a plantação de eucaliptos, tendo seu espaço rural voltado para construção de estruturas para garantir a mercantilização da natureza e sempre fragilizando a produção agrícola das famílias no campo”, explica.

A bola da vez é a plantação de soja que passou a devorar ainda mais espaços que eram dos camponeses. É o caso do assentamento Francisco Romão, que completou dez anos em 2022.

Alcione da Silva, presidenta do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rural de Açailândia, relata os conflitos na região com a chegada das comodities  agrícolas.

“Nesses últimos 4 anos acirrou mais a questão da opressão por conta da plantação de soja. A gente só vê destruição, desmatamento e o êxodo rural aumentando. Eu observo que muitas pessoas que tinha um pedacinho de terra, saíram, mas não foi porque elas quiseram, foi pela dominação do sistema agromineral que obriga a gente ir para cidade, passando fome e ficar na calamidade a todo momento”, desabafa a agricultora.

Para aqueles que não saíram da terra à procura de melhores condições de sobrevivência, entrou no sistema de arrendamento vivendo cercados pela soja e expostos a aplicação excessivas de agrotóxicos.

A assentada Gabi, como gosta de ser chamada e prefere ser identificada, reclama da exposição das famílias aos agrotóxicos lançados por avião ou outras formas de pulverização realizada pelos sojeiros.

“Os sojeiros trabalham com um agrotóxico muito forte, principalmente, quando a soja tá crescendo para colheita. E os que arrendaram suas terras e aqueles que não venderam ficaram muito próximo das plantações sofrendo todo tipo de pressão para liberarem seus lotes e sendo contaminados”, lamenta.

Para a assentada, o arrendamento de terra ou a venda do lote, infelizmente, foi a saída de muitas pessoas diante da dificuldade de viver sem políticas públicas voltadas para o campo no município maranhense.

 “Sem políticas rurais voltadas para o campo e com a vulnerabilidade que vem desde os tempos da implantação do projeto da Vale nessa região, vai esmorecendo e enfraquecendo o povo por tanto sofrimento, ai aparece um sojeiro e os assentados não pensam duas vezes em tentar algum negócio que lhe ajude”, comenta.

Segundo dados da Secretaria de Agricultura e Pesca de Açailândia – SEAGRI, baseado nos estudos da Companhia Nacional de Abastecimento – CONAB, da safra dos anos de 21/22, Açailândia já tem 78.850 mil hectares de área plantada de soja. A cidade está entre as três maiores produtoras de soja em tonelada no estado pela apuração do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.

Conforme o levantamento da safra 22/23 de grãos realizado pela CONAB em junho de 2023, a soja se destaca com o maior crescimento nesse período no Brasil. A estimativa é de um volume de 155,7 milhões de toneladas. O resultado supera em 24% a produção da temporada passada, ou seja, cerca de 30,2 milhões de toneladas colhidas a mais.

A saga de Canaã dos Carajás

Outro lugar emblemático, onde a mineradora Vale bagunçou a produção rural de maneira mais incisiva ainda, foi no município paraense de Canaã dos Carajás, no sudeste paraense.

Pesquisas realizadas por professores da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará- Unifesspa, mostra o declínio da produção camponesa de arroz, feijão, mandioca e produção de farinha no município, desde que a Vale começou a adquirir terras dos camponeses pra a implantação do projeto S11D na última década.

Na mesma proporção, é possível observar nas pesquisas que novamente a dobradinha agromineral prevalece. O monocultivo de milho transgênico na zona rural da cidade teve um crescimento de 55% em 1997 para 93% em 2018.

O professor Dr. Fernando Michelotti, da UNIFESSPA, que fez parte das pesquisas e estudou essa relação agromineral na luta pela terra no sudeste paraense, em seu doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), demonstra porque o agronegócio conseguiu se consolidar onde já existia as atividades da Vale.

“Tem alguns pontos que deixa isso em evidência. Um deles é o compartilhamento da infraestrutura logística. Pensar a mineração para além da extração, pensar toda a parte da infra que vem junto da parte minerária, permite observar a estrutura de um agronegócio diferenciado, aqui na região, do que foi por exemplo na abertura da fronteira amazônica”.

E acrescenta: “A mineração tem esse papel de estruturação regional que acaba viabilizando uma modernização do agronegócio que vem na esteira dela. Claro que não é só conjuntamente com a mineração, pois o agronegócio avança cada vez mais nas fronteiras. Por outro lado, a mineração está lá e viabiliza um tipo de investimento que vai beneficiar o agronegócio. Não muito longe de Canaã dos Carajás, os grandes frigoríficos que se instalaram em Marabá (PA) representam isso, como a JBS, se instalando em lugares onde a Vale já tinha organizado uma estrutura com estradas, ferrovia e energia”, exemplifica.

Expulsos de casa

De maneira tranquila, Laurinda Silva vai oferecendo e vendendo balas e doces pelas ruas de Canaã dos Carajás. A lentidão dos seus passos é esclarecida pela mesma: “Ah vou passar o dia e parte da noite da rua vendendo, então vou devagar para não cansar”.

Filha de uma família cearense, ela foi moradora da extinta Vila Racha Placa, que foi desalojada para a implantação do projeto S11D – o maior projeto de minério de ferro do mundo- implantado pela Vale no município em meados de 2013.

“Fomos indenizados, mas o valor pago não deu para meu pai comprar uma casa na cidade. Também ele era agricultor e comíamos e vivíamos da terra, da venda dos produtos que ele plantava e colhia”, explica.

O destino foi fatal: “meu pai entrou em depressão e morreu dois anos depois que perdemos a terra e minha mãe parece que enlouqueceu, não aguenta a vida difícil na cidade, vive trancada no kit net que moramos juntas”, reclama.

Riqueza inalcançável

Canaã dos Carajás, oriunda de um projeto de assentamento rural implementado pelo governo ditatorial brasileiro na década de 1970, virou uma das cidades que mais arrecada com a atividade mineral em seu território, cerca de 700 milhões de reais no ano de 2022, conforme cálculos do Instituto Brasileiro de Mineração – IBRAM, ficando entre as cem cidades mais ricas do país, superando capitais como Rio Branco e Macapá, pelos dados do IBGE.

No entanto, sobram pessoas em meio a tanta arrecadação. Cálculos do IBGE do censo de 2022, mostram que a população de Canaã foi que mais cresceu no Brasil aumentando 182,35%, passando de 26,7 mil para 75,4 mil em doze anos.

“São pessoas atraídas pela mineração vindas de vários lugares se misturando as pessoas que perderam suas terras e ficaram na cidade sem ocupação definida, por isso hoje a cidade tem várias ocupações de terra”,fala Volney Nascimento, das Brigadas Populares de Canaã dos Carajás.

Volney vive numa ocupação de terra que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) aponta ser destinado para famílias agricultoras, mas que a Vale insiste em dizer que é dela.

Filho de agricultores de projetos de assentamento rural iniciais de Canaã dos Carajás, Volney chegou ao município com 5 ano de idade, vindo do estado de Goiás. Na fase adulta trabalhou por 14 anos nas empresas terceirizadas da Vale. Diante de incertezas e situação de precariedade no ramo que exercia,  resolveu fincar novamente sua vida num pedaço de terra. “Ocupamos a área em 2015, daqui tiro meu sustento, na cidade as coisas são muita cara, comida, aluguel, não dá para viver é um caos, a parte urbana inchada de gente com uma população muito pobre”, relata.

A CPT [Comissão Pastoral da Terra], acompanha 40 processos na justiça de mais de 1.800 famílias agricultoras que estão sendo perseguidas pela Vale, na zona rural de Canaã dos Carajás. A alegação da empresa é que as terras lhe pertence, o que tem sido contestado por camponeses e assessoria jurídica da CPT na justiça.

O professor da UNIFESSPA, Jakson Aragão Pinto, que trabalha junto a CPT na região, na tentativa de ajudar os camponeses a se manterem nas terras, afirma que a mineradora tem como objetivo a reconcentração da terra, que em outros tempos foram distribuídas às famílias.

“Os projetos de mineração da Vale em Canaã dos Carajás, tem uma dinâmica importante, porque ele tem como estratégia recuperar áreas que historicamente foram destinadas aos camponeses para produção de alimento, por isso todos esses conflitos”. Conclui.

 

Movimento pela Soberania Popular na Mineração