Katiane de Jesus (pesquisadora e militante do MAM)
No dia 20 de fevereiro de 2024, o Coletivo Estadual de Negritude do MAM (PA) promoveu uma formação para discutir “Qual o lugar ocupado pelas mulheres no problema mineral?”. A atividade ocorreu às 18h, de forma remota via Google Meet, facilitada por Katiane de Jesus (pesquisadora e militante do MAM) e mediada por Prog (multiartista e militante do MAM)
A formação teve como foco as relações de gênero enquanto manifestações de relações de poder historicamente construídas a partir da lógica de dominação masculina e subordinação feminina. A autora Silvia Federici (2017), em sua obra Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva, demonstra como o desenvolvimento do capitalismo excluiu as mulheres da esfera produtiva e as confinou ao trabalho reprodutivo não remunerado. Isso ocorreu porque a exploração capitalista não se deu apenas por meio da expropriação de terras e recursos, mas também pelo controle dos corpos femininos.
Partindo dessa construção, o corpo feminino foi associado à passividade e ao dever reprodutivo, reforçando a ideia de que as mulheres existiam para sustentar a estrutura capitalista por meio da reprodução e do trabalho doméstico. Dessa forma, o trabalho reprodutivo das mulheres foi desvalorizado, sendo visto como uma extensão “natural” do papel feminino, enquanto o trabalho dos homens foi cada vez mais integrado à economia de mercado. Além disso, a maternidade passou a ser rigidamente controlada pelo Estado e pela Igreja.
Ao discutirmos essas relações a partir da América Latina, observamos que elas não podem ser analisadas isoladamente, sem considerar o projeto colonialista e a expansão imperialista. Nesse sentido, a autora Lélia Gonzalez (2020), em Por um feminismo afro-latino-americano, nos convoca a contestar a naturalização da mulher branca, burguesa, intelectual e eurocêntrica como padrão homogêneo, refletindo sobre como as mulheres latino-americanas enfrentam opressões estruturais de raça, classe e gênero, fundamentadas no eurocentrismo.
Lélia Gonzalez (2020) demonstra que as mulheres latino-americanas são atravessadas pelo sexismo e pelo racismo. O sexismo é um sistema de opressão que subordina as mulheres aos homens, fundamentado na diferenciação social de gênero (Gonzalez, 2020). Já o racismo é um sistema de dominação que hierarquiza grupos humanos com base em construções sociais da raça, conferindo privilégios aos brancos e desvantagens aos grupos racializados, atuando estruturalmente na economia, na política e na cultura (Munanga, 2004).
Trazendo esses conceitos para o contexto do problema mineral, percebemos que esse sistema-mundo cria formas específicas de marginalização das mulheres, relegando-as a espaços de exclusão, ocupações desvalorizadas, trabalho intermitente e baixos salários. Isso as torna as principais vítimas da violência de gênero, do racismo e dos crimes ambientais. Além disso, aquelas que exercem liderança política em seus territórios enfrentam cotidianamente ameaças de morte, invasões de suas terras e deslocamentos forçados. Também sofrem com a destruição dos bens naturais, o que compromete suas possibilidades de existência e permanência em seus territórios. Muitas dessas mulheres já integram os alarmantes números de assassinatos no campo e as estatísticas da violência política contra as mulheres. Destituídas de sua humanidade, encontram-se excluídas dos espaços de decisão, ausentes das políticas públicas e desprovidas de direitos.
Conforme a cartilha Mulheres e Mineração no Brasil, produzida pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE, 2016), e a coleção Mulheres Atingidas: Territórios Atravessados por Megaprojetos, organizada pelo Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS, 2021), as mulheres no contexto do problema mineral enfrentam uma série de impactos profundos e estruturais. Essas publicações demonstram que a mineração intensifica a divisão sexual do trabalho, promove a contratação massiva de trabalhadores estrangeiros em territórios vulneráveis, agravando a precarização, e eleva os riscos à saúde, incluindo contaminações.
Além disso, ocorre o agravamento da dependência econômica das mulheres, o reconhecimento exclusivo do homem como responsável pelo sustento da casa e o aumento da sobrecarga de trabalho reprodutivo e doméstico devido à degradação ambiental e à poluição. A mineração também contribui para a perda da soberania alimentar, a desestruturação social e econômica das comunidades afetadas, o adoecimento psíquico e o apagamento identitário das mulheres.
Outro fator alarmante é o crescimento da violência em múltiplas formas, incluindo o aumento da violência doméstica, da violência masculina e da violência sexual. As mulheres tornam-se mais vulneráveis à prostituição e ao tráfico humano, além de estarem expostas a formas extremas de violência sexista, como assédio sexual, estupro e feminicídio. Por fim, há um aumento significativo do alcoolismo, do uso de drogas e da violência tanto no ambiente doméstico quanto no espaço público, aprofundando ainda mais as desigualdades e violações enfrentadas pelas mulheres em territórios impactados pela mineração.
A formação também trouxe reflexões sobre a ausência de produção de dados nos relatórios de conflitos da mineração, o que continua invisibilizando e apagando a presença das mulheres nesse contexto. A comparação entre os dados da Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher e os do Relatório de Conflitos da Mineração no Brasil ano de 2023 revela que os estados com os maiores índices de conflitos minerários também apresentam altos índices de violência contra a mulher.
Os dados do Gráfico 1 indicam que, conforme o Relatório de Conflitos da Mineração no Brasil (2023), os estados de Minas Gerais (31,90%), Pará (13,70%) e Bahia (9,00%) lideram o ranking de conflitos relacionados à mineração. Comparando esses dados com os da Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, observa-se que 31%, 32% e 27% das mulheres desses estados, respectivamente, sofreram violência doméstica. Além disso, 53%, 49% e 43% das mulheres agredidas nesses estados não reconhecem a situação como violência. Outros dados alarmantes são apresentados no Gráfico 2, que indica o número de homicídios de mulheres e os pedidos de medidas protetivas.
Gráfico 1: Violência contra a mulher
Gráfico 2: Homicídios de mulheres e pedido de medida protetiva de urgência
Entretanto, conforme demonstram as narrativas das mulheres nos territórios, elas são muito mais do que meros dados estatísticos ou vítimas das violências a que são submetidas. São fundamentais na luta pela destruição do capitalismo, ameaçando o status quo e subvertendo a lógica do capital na busca por emancipação e na defesa de suas comunidades.
Federici (2017) demonstra que, desde a primeira fase do desenvolvimento capitalista, as mulheres estiveram na linha de frente contra o capital e foram defensoras das culturas comunitárias. Essa resistência continua até hoje, com as mulheres como principais opositoras à mercantilização da natureza.
O processo de engajamento na luta nem sempre é fácil para as mulheres. Se as dimensões de raça, classe e gênero já as colocam em uma situação de discriminação em relação à mineração, isso se intensifica quando se soma a condição de defensoras de direitos humanos e do meio ambiente. Diante da exploração e dos impactos causados pela mineração, as mulheres precisam (r)existir, mesmo diante das múltiplas opressões que atravessam seus corpos-territórios — corpos que refletem suas territorialidades e especificidades.
Portanto, faz-se necessário pautar, dentro do MAM, a luta antipatriarcal, antissexista e antirracista. É fundamental reconhecer o protagonismo dessas mulheres que se organizam na defesa de seus territórios, pois elas trazem contribuições que desafiam a divisão política e sexual do trabalho no capitalismo patriarcal e racista.
REFERÊNCIAS
Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração. Conflitos da Mineração no Brasil 2023: Relatório Anual. Observatório dos Conflitos da Mineração no Brasil, 2024. Disponível em: www.observatoriodaconflitomineração.org.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Editora Elefante, 2017.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2020.
INSTITUTO BRASILEIRO DE ANÁLISES SOCIAIS E ECONÔMICAS (IBASE). Mulheres e Mineração no Brasil. Rio de Janeiro: IBASE, 2016. Disponível em: https://ibase.br/publicacoes_ibase/mulheres-e-mineracao-no-brasil/ Acesso em: [06 de fev. 2025].
INSTITUTO DE PESQUISA DATASENADO. Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher. Brasília, 2023. Disponível em: https://www.senado.leg.br/institucional/datasenado/mapadaviolencia/#/pesquisanacional/pesquisa
MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. Programa de educação sobre o negro na sociedade brasileira, 2004.
PACS. Mulheres atingidas: territórios atravessados por megaprojetos. Organização: Ana Luísa Queiroz, Marina Praça, Yasmin Bitencourt. 1 ed. Rio de Janeiro: Instituto Pacs, 2021
Movimento pela Soberania Popular na Mineração
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