Enquanto mineradoras consomem trilhões de litros de água por ano, comunidades enfrentam escassez e contaminação, evidenciando grave crise hídrica
Por: Mayra Souza
O Dia Mundial da Água, instituído pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1993, não é uma data comemorativa, mas sim um dia de reflexão sobre a importância e a urgência da preservação desse recurso vital. Criado para sensibilizar a população sobre o papel crucial da água para a natureza e para a vida humana, o dia reafirma a ideia de que a água é, de fato, fonte de vida. Contudo, a mineração tem se consolidado como um dos principais vetores de agravamento da crise hídrica no Brasil. A extração mineral em larga escala altera profundamente os ciclos naturais da água, compromete nascentes, aquíferos e cursos d’água, e provoca desmatamento em regiões estratégicas para a recarga hídrica.
A captação intensiva de bilhões de litros de água, muitas vezes em áreas sensíveis e sem o devido controle público, gera escassez para populações rurais, povos tradicionais, comunidades ribeirinhas e áreas urbanas periféricas. Além disso, a contaminação de rios por rejeitos e substâncias tóxicas associadas à atividade mineral afeta drasticamente a qualidade da água disponível. Nesse cenário, o modelo de exploração mineral vigente aprofunda desigualdades, compromete a segurança hídrica de vastas regiões e coloca em risco a garantia de um direito básico: o acesso à água limpa e segura.
A mineração no Brasil consome cerca de 15,7 trilhões de litros de água por ano – volume suficiente para abastecer toda a população do país e ainda sobrar. Enquanto comunidades enfrentam a escassez do recurso, o setor mineral retira 1,8 bilhão de litros por hora, muitas vezes sem controle adequado por parte dos órgãos públicos. A maior parte dessas autorizações vem dos estados como Minas Gerais, que concentra mais da metade da água liberada para a mineração.
Os dados constam no estudo “Ralos e gargalos das outorgas: uma análise sobre a captura das águas pelo agronegócio irrigado e pela mineração”, publicado em novembro de 2023 pela FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional). A pesquisa revela um cenário preocupante de uso intensivo dos recursos hídricos pela mineração, com impactos negativos sobre a segurança hídrica e os direitos territoriais de populações afetadas.
Segundo o relatório, os números oficiais podem ser ainda maiores, devido a falhas, lacunas e falta de transparência nas bases de dados federais e estaduais. Um exemplo dessa fragilidade é o desconhecimento, por parte dos órgãos estaduais, da origem de 578 bilhões de litros de água captados anualmente de aquíferos para uso do setor mineral. O estudo revela que:
- 578 bilhões de litros são retirados de aquíferos sem origem conhecida.
- 92% da água usada pela mineração tem outorga estadual, fortalecendo o lobby das empresas
- 58% dos conflitos envolvendo mineradoras estão diretamente relacionados à disputa por água
Entre 2011 e 2020, 58% dos conflitos envolvendo mineradoras registrados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) estiveram relacionados à disputa pela água, enquanto outros 42% envolveram disputas por terra. Esses dados evidenciam a mineração como uma das principais causadoras de conflitos socioambientais, ao disputar diretamente recursos essenciais para a vida das comunidades.
Contaminação da água

“Eu fiz o teste. Sabe o que tem dentro da nossa caixa d’água? Minério”, Brumadinho – MG. Foto: Evandro de Paula
A mineração também representa uma ameaça significativa à qualidade das águas, com a contaminação de várias bacias hidrográficas no Brasil, comprometendo não só a qualidade da água, mas a saúde das populações locais. A contaminação resulta do alto consumo de água para o beneficiamento de minérios, do rebaixamento do lençol freático durante a extração e do despejo de rejeitos tóxicos nos recursos hídricos. De Minas Gerais à Amazônia, a mineração tem deixado um rastro de contaminação das águas, danos à saúde pública e insegurança hídrica nos territórios.
- Bacia do Rio Doce (MG e ES): O rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (2015), liberou milhões de metros cúbicos de rejeitos, contaminando o Rio Doce e afetando comunidades ao longo de sua extensão
- Bacia do Rio Paraopeba (MG): Em 2019, o rompimento da barragem em Brumadinho despejou rejeitos no rio Paraopeba, comprometendo a qualidade da água e a subsistência das populações ribeirinhas
- Bacia do Rio Tapajós (PA): A atividade de garimpo, especialmente nas terras indígenas Munduruku, resultou na contaminação por mercúrio, afetando a saúde das comunidades locais
- Bacia do Rio Madeira (RO): A mineração ilegal e o uso de mercúrio têm contaminado o rio Madeira, prejudicando a fauna aquática e a saúde das populações ribeirinhas
- Bacia do Rio Murucupi (PA): Em 2018, a refinaria da Norsk Hydro em Barcarena despejou rejeitos tóxicos no rio Murucupi, afetando cerca de 40 mil pessoas
Esses exemplos ilustram a contribuição da mineração para a degradação dos recursos hídricos no Brasil, exacerbando a crise de acesso à água limpa e segura e aprofundando as desigualdades socioambientais no país. O modelo de exploração mineral predatório vigente não apenas sobrecarrega os recursos hídricos essenciais para a vida das comunidades, mas também compromete a qualidade da água, provocando graves impactos ambientais e sociais.
Quanta água o maior projeto de mineração de urânio do Brasil irá “beber”?
O projeto de extração de urânio e fosfato em Santa Quitéria, no semiárido do Ceará, prevê o uso de 855 mil litros de água por hora — cerca de 600 milhões de litros por mês — e tem gerado preocupação entre especialistas devido aos impactos no abastecimento das comunidades que dependem do açude Edson Queiroz, conhecido como Serrote. O estudo aponta que a exploração dessas jazidas exige volumes de água incompatíveis com a realidade da região semiárida, que já enfrenta escassez hídrica. Além disso, há o risco de contaminação química e radiológica das águas.
Em licenças anteriores, a “insustentabilidade hídrica do empreendimento” foi apontada como um dos motivos para a negativa da autorização. O projeto de exploração exigirá 54 caminhões-pipa de água por hora, enquanto algumas comunidades locais, que há anos pedem uma adutora, recebem entre 26 e 36 caminhões-pipa por mês.
Para Pedro D’Andrea, geógrafo, educador popular e militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração no Ceará, o projeto de mineração de urânio e fosfato representa uma ameaça ao abastecimento de água da região: “O projeto de mineração de urânio e fosfato demanda 24 milhões de litros de água por dia, em pleno sertão central do Ceará. É o mesmo que retirar água de 145 mil cearenses e destinar a duas empresas. Queremos água para beber, produzir e trabalhar, para matar a fome e a sede do povo do Ceará. Por isso, o lema da luta para que Santa Quitéria seja território livre de urânio e fosfato é ‘Água sim, urânio não’”.

Ato interrompe audiência pública em protesto contra o Projeto Santa Quitéria – CE. Foto: Davi Pinheiro
A questão não se limita apenas à disputa pelo recurso hídrico, mas também à necessidade de garantir que a água seja preservada e destinada ao consumo e produção das comunidades locais, e não desviada para a exploração mineral, que favorece interesses de grandes empresas mineradoras e ignora as demandas da população.
“A alta demanda de água localizada em território de déficit hídrico se insere no circuito de degradação dos sistemas hídricos e potencialmente afetará as demandas locais e regionais de água bruta, versando em termos da quantidade e da qualidade de água disponível aos demais usos da bacia. (…) A condição de insegurança hídrica é uma lesão direta às legislações citadas.” – Trecho do parecer técnico-científico.
Leia na íntegra o parecer técnico: 8662600-Parecer-Técnico-EIA-RIMA-PSQ-2025.pdf
O projeto também representa um grande risco de injustiça hídrica, pois não respeita a soberania hídrica das comunidades tradicionais, como indígenas e quilombolas. As compensações financeiras propostas são insuficientes para garantir as condições de vida e trabalho que essas comunidades mantinham, como a pesca artesanal e a agricultura familiar. Essa situação revela a falha em respeitar os direitos territoriais e as necessidades fundamentais dessas populações, priorizando um modelo de exploração mineral em detrimento do sustento e bem-estar das comunidades afetadas.
Para garantir o direito à água para todos, é fundamental revisar o modelo de exploração atual, exigindo mais fiscalização, transparência e políticas públicas eficazes. A soberania popular deve ser central neste processo, com a participação ativa das comunidades afetadas nas decisões sobre o uso dos recursos naturais, assegurando a defesa dos seus direitos e promovendo um desenvolvimento mais justo e responsável. A luta pela água deve ser encarada como uma pauta política urgente, com mobilizações populares em defesa das águas no Brasil e a busca por um modelo de mineração popular e soberano.
O bem comum deve estar a serviço da população, e não dos interesses do capital mineral, que coloca as necessidades da sociedade acima dos lucros das grandes corporações.
Mayra Souza é artista gráfica, comunicadora popular e militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração – MAM
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