Comunidades se veem reféns de manipulação da mineradora em que resultado é irreparável para as famílias

Por Coletivo de Comunicação do MAM Nacional

Era dia 8 de fevereiro de 2019 quando a sirene disparou em Barão de Cocais. Foram cerca de 500 pessoas das comunidades de Vila do Gongo, Piteira, Tabuleiro e Socorro que tiveram que abandonar suas casas naquele dia, a exatas duas semanas após rompimento da barragem do Córrego de Feijão, em Brumadinho.

Parte do comércio da localidade, que fica na região central de Minas Gerais, ficou paralisado, bancos foram fechados, o fórum mudou endereço para outro local, longe da área de risco de destruição dos rejeitos. O medo e o caos daquela madrugada específica foram trocadas, ao longo do tempo, pela insegurança de acordos, doenças psicológicas e o pior dos cenários – sair de casa com a roupa do corpo, sem documentos, pertences, sem o direito a reaver nada conquistado ao longo da vida para uma quadra poliesportiva da cidade.

A Vale isolou as moradias dessas 500 pessoas como área sob responsabilidade da mineradora. Alegando segurança, todos foram impedidos a retornar e após muita pressão e negociação com a empresa, foram cadastrados para receberem auxílios emergenciais pela situação, como pagamento de aluguel, auxílio gás de cozinha, luz, água, enfim, condições mínimas para a sobrevivência daqueles que tiveram seu meio de vida usurpados da noite para o dia.

“Minha irmã teve que vir com os filhos dela acordando a gente, e as crianças gritando que não queriam morrer. Vi idosos sendo removidos de suas casas em carrinhos de mão”, conta Élida Couto, da Comissão de Moradores de Socorro. Ela residia em Socorro, em uma rua próxima à barragem, perto da única sirene que não tocou naquele dia. “A Vale já sabia e não comunicou à ninguém. Estávamos todos estarrecidos com o acontecimento recente de Brumadinho, não tinha nem um mês, então aquela memória da lama estava muito presente para todos nós. Confirmamos com a comunicação da Vale de que o nível teve que ser elevado e que era pra avisar ao pessoal”, conta, sobre o total despreparo da mineradora em lidar com a situação. “Instalaram sirenes mas não preparam primeiros socorros para ninguém”, conta.

Algumas famílias possuíam animais de criação, como cavalos, galinhas, vacas. A vida mudou da lógica da roça, da abundância de terras, para a da cidade, sem que ninguém ao menos tivesse desejado tal mudança. A mineradora investiu pesadamente na região, destacando uma equipe técnica e de advogados para conduzir os processos, o que permitiu melhores condições para que a Vale avançasse com sua estratégia de dividir a comunidade, diminuindo a garantia de direitos e valores das indenizações.

O processo de negociação se estende até hoje, e não foi em nenhum momento sobre uma indenização moral, mas uma negociação sobre a aquisição desses terrenos, via compra ou aluguel. “Desde o início, a Vale mostrou interesse em comprar as propriedades em Socorro. No contrato de aluguel ela coloca uma cláusula de que, passado um ano, é retirada a garantia de arrependimento, que foi algo conquistado em reuniões que fizemos com a empresa. Ou seja, ela não respeita o que está em ata, e obriga as pessoas a venderem no fim das contas ou à abaixarem o valor. Também permite que seja feito o que quiser com o imóvel, ou seja, se daqui a um ano eu quiser reaver, ela pode ter derrubado a casa”, conta Élida. “Tem que ser do jeito que ela quer. Tudo que está registrado em ata a Vale não cumpriu”, desabafa.

A Vale extrai na região minério de ferro. No início deste mês a mineradora resolveu entrar com uma ação judicial para finalizar o pagamento das medidas emergenciais e acelerar a negociação de compra e venda das terras na região de Socorro, impondo os critérios que ela entende como viáveis para tomar a propriedade. O prazo é de concessão dos auxílios emergenciais por mais seis meses ou até um ano para a população decidir o destino de suas casas. É um jogo de um só ganhador, ou, para quem costuma jogar o tradicional jogo do xadrez, o famoso xeque-mate – ataque decisivo do rei, peça mais poderosa do xadrez, nesse caso a Vale, em que não há qualquer possibilidade de fuga ou defesa do adversário. Dessa maneira, a Vale quer impor a compra da comunidade de forma célere, judicialmente, e ficar livre para explorar as riquezas minerais na região.

Algumas famílias fizeram negociações e refizeram suas vidas. Mas não é o caso de todos. Especialmente para pessoas que nasceram e cresceram lá, há muita dificuldade de adaptação à lógica da cidade, adolescentes se envolvendo com drogas e toda uma memória social jogada às traças – as festas tradicionais, as quadrilhas juninas, tudo foi silenciado em nome do lucro.

As medidas emergenciais foram prorrogadas até este mês. Hoje, a Vale diz  que a comunidade não está mais passando por uma situação de emergência. “Eu tinha fogão a lenha em minha casa, agora, uso o gás para cozinhar. Entendemos que esse e outros garantias devem continuar. Antes eu tinha dois lotes só de hortas, tínhamos animais, frutas. A maioria das pessoas trabalhavam capinando, isso era sua fonte de renda. “Pra gente continua sendo uma situação de emergência sim, porque ela tirou a gente do nosso costume, a realidade que estamos vivendo não é compatível. Pagar esses valores é minimizar esse impacto, mas o emocional, por exemplo, infelizmente ela não conseguir apagar”. Élida mora com três idosos, pai, mãe e uma tia com Alzheimer. Moram todos em um segundo andar de uma casa térreo – no porão, outra família habita.
AUDIÊNCIA DE CONCILIAÇÃO

Uma audiência de conciliação está marcada para a próxima segunda-feira (26). O anseio de parte da comunidade de retornar às suas vidas, casa e dignidade, devem ser garantidos.

“O que está em jogo é a continuidade ou não do auxílio aos moradores, que foram totalmente afetados. O povo esta organizado para explicar ao juiz de que o que a Vale quer retirar da população são auxílios essenciais para a vida dos moradores nesse momento. A saúde física e mental de todos estão muito afetadas, principalmente em meio à pandemia mundial do coronavírus. Uma decisão judicial desfavorável irá trazer um prejuízo enorme para as pessoas. O que ela tinha na comunidade rural ela não consegue ter na cidade. A suspensão dessas medidas seria um massacre com a comunidade e o povo já decidiu, não irá abrir mão de retornar à comunidade de Socorro e a manutenção dos auxílios é fundamental para garantir dignidade enquanto as famílias não retornam para suas terras. A Vale quer se aproveitar da situação para tomar a região para fins minerários, vai ter muita luta para que a justiça seja feito e o povo retome o território”, anuncia Clóvis Augusto, militante do MAM na região.

“Até dia 08 de fevereiro eu jamais imaginaria que iria ter essa mudança de vida. A maioria das pessoas acham que estamos sendo bem assistidos pela Vale, porque ela vende isso na mídia. Imagine você ser retirado da sua realidade. Imagine você não ter mais álbuns de fotografias com suas memórias, recordações, relíquias pessoais”, finaliza Élida.